Entrevista com Alejandro Jodorowski

Em 2007, Alejandro Jodorowski veio para o Brasil, para participar de uma mostra dos seus filmes. Conseguimos marcar uma entrevista com ele, para o número especial que estávamos fazendo da revista Azougue, sobre “invenção/experiência”. Fui para a conversa com o Renato Rezende e a Gabi Campos, que filmou tudo (gostaria de rever esse material). Conversamos soltos, Jodorowski leu poemas e tirou tarô. Depois, mandou uma mensagem dizendo que tinha achado aquela uma das entrevistas mais fortes da sua vida. Escolho ela para abrir esse blog de entrevistas, poemas e ideias soltas:

– Viemos aqui falar de poesia.
Ah, que bom. Vocês sabem que eu escrevo poesia todos os dias? Assim que me levanto, escrevo uma poesia.

– Como uma meditação?
De certa maneira. Cada dia eu faço uma.

– É um método surrealista, de escrita automática?
Como dizer? Não é um automático, onde você fala qualquer coisa, qualquer besteira. Você entra num profundo sentimento e expressa o que sente sem nenhum limite.

– É uma auto-investigação?
Sim, sim. Claro que é um trabalho inútil, porque a beleza é impossível. É como a busca do impossível.

– Isso é a poesia?
Sim. Eu digo que a poesia é o excremento luminoso de um sapo que comeu um vaga-lume.

– Você disse que “o tarô é uma arte. E como toda arte só se realiza ao transformar-se em poesia…”
Sim, sim. Certo. Veja, hoje me levaram para almoçar, porque eu queria conhecer um restaurante tipicamente brasileiro. Chegou uma mulher vendendo pequenos sacos de pano e eu comprei um saquinho para o meu tarô. Sempre ando com um tarô. Esse é um saquinho brasileiro para um tarô. (risos) Isso por si só já é um ato poético. Você perguntou, como a poesia é tarô? (Tira o tarô do bolso e estende as cartas em leque, com a face para baixo) Vou explicar porque o tarô é poesia. Escolha uma carta. Qualquer uma. Ah, este é o sol. Essa carta poderia ter qualquer significado. Agora escolhe uma segunda carta. A estrela. E mais uma, a última. Essa carta é o julgamento. Você escolheu três cartas, por acaso. No entanto, nas três cartas há um brilho luminoso na parte superior. Há um sol, aqui, esse sol se multiplica em sete estrelas, e por fim do sol sai um ser. Acima você tem a entrada do mundo luminoso do inconsciente. Ao tocar o mundo luminoso do inconsciente, que é o seu retrato, porque tem um rosto olhando para ele, você se espalha em diferentes energias, que são as sete energias dos seus chacras, e então abre-se o seu inconsciente e sai o ser que o povoa. Você escolheu, como se por acaso, as únicas cartas em que os personagens estão desnudos. Porque todo o tarô está vestido (mostra as cartas). Se estão nus, é porque estão buscando a verdade. E como a verdade é inalcançável, o resplendor da verdade é a beleza. O resplendor da verdade é a beleza. Esta aí, na carta que você tirou. Então, na carta que você tirou há um rio, que é o atravessar de um rio… que é derramado por essa mulher, que é a alma do mundo, para a transformação da alma da terra, andrógina, que surge chamada pela mente superior. Assim se realiza a poesia. Sua pergunta é complexa… poderíamos falar o dia inteiro. Por exemplo, pergunta sobre um detalhe das cartas, onde caia sua atenção, ponha o dedo em algo, qualquer detalhe…

– Essa água dourada que cai do jarro que a mulher está carregando.
Repare, ela tem duas águas. Uma água azul, escura, que sai de um jarro por entre as suas pernas, que é a água criativa, sexual, e você nota a água amarela, que é da cor dos seus cabelos, da cor das estrelas, porque amarelo é a cor das estrelas, então você está falando da água espiritual, emocional. É isso que ela está dando a este mundo. Mas, já que essa água tem relação com seus cabelos, e seus cabelos estão crescendo, talvez ela esteja absorvendo a água, não dando. Absorvendo a energia que nasce nas estrelas.

– É sempre um processo de transformação? Isso é a poesia, também, um processo de transformação?
Sim. E o tarô pode criar mundos. Mundos de interpretação simbólica.

– Hakim Bey, um anarquista ontológico, diz que “a feitiçaria se recusa a ser mera metáfora para a literatura. Ela insiste que os símbolos devem causar eventos, assim como epifanias pessoais”. Qual a relação entre arte e magia?
O criador da magia em nossa cultura é Eliphas Lévi, que se chamava Alphonse-Louis Constant, durante o século xix, que escreveu Dogma e ritual da alta magia, onde ele faz uma história da magia. Depois os ingleses da Aurora Dourada, e Aleister Crowley, que se dizia uma reencarnação de Eliphas Lévi, continuaram com o tema da magia. Mas Crowley era um poeta, assim como o próprio Lévi. No seu renascimento, a magia nasceu unida à poesia, porque um dos grandes aspectos da magia são as incantações. Quando a palavra é criadora. Um grande progresso da cabala são as palavras que são incantações, e que produzem transformações cinéticas, ou na natureza. Então claro que a verdadeira poesia está ligada ao milagre. Darei um exemplo do que faz a poesia. Eu estava nessa época no Chile, era um adolescente, um garoto de uns 20 anos e era muito amigo de um psicanalista. E um dia ele me disse que acabara de passar algo incrível, porque, ele disse, você sabe que um trauma é algo desagradável, mas tenho um caso de alguém que se tornou louco devido a um pensamento poético que teve. Há um rio em Santiago, o Mapocho, e no poente ele se pôs a observar o rio. As águas do rio passam, passam… o reflexo das estrelas permanece. Ficou louco. Isso se deu porque era uma pessoa comum. O primeiro pensamento poético que teve tornou-o louco. E isso explica tudo. Tenho livros de poesias, mas os publico muito pouco, a poesia não se vende. Nunca falei dessas coisas, mas elas me interessam muito. Quando você realmente entra no terreno da poesia, entra em alquimia, entra num processo de transformação interna, na qual a consciência se expande. Você procura e procura e sua consciência vai se alterando. Há uma transformação.

– Há uma relação entre o poeta e o xamã, o mago?
Sim. Certo. Claro. São incantações. Sou muito amigo de novos poetas, poetas do mundo todo. Estão criando uma poesia com forma, com projeções. Há uma tela, e o poema é projetado e as palavras se movem, ganham formas. Há jogos de sons. É uma tentativa de se chegar na incantação mágica. Nada mais que isso, pois para mim eles estão cometendo um engano. Pois a palavra não é apenas som, e sim também conceito. Então um mero jogo formal com os sons de uma palavra está amputado do seu conteúdo. A verdadeira coisa é a união de sons e conceitos.

– O artista tem que experimentar a vida em todas as suas fases? Ser um santo, um bêbado, um feiticeiro?
Depende. Veja, você pode construir sua vida ou pode destruí-la. Eu acredito que um verdadeiro artista não se destrói. Isso é um mito que vem de Baudelaire, o poeta maldito. Eu creio que o poeta revolucionário atual é um homem são. Antes o mundo era são, e os poetas eram malditos. Mas hoje o mundo está maldito. O que quer dizer que ser maldito não é nem um pouco revolucionário. A maior bobagem que podemos oferecer ao mundo é o niilismo. O mundo não vai acabar. A raça humana é boa, vai chegar à perfeição. A raça humana vai conhecer todo o universo. Vai viver tanto quanto o próprio universo, e se converterá na consciência do universo. Essa é a minha meta. Quero conhecer todo o universo, viver tanto quanto o universo, por todos os meios, a reencarnação, o que for, então converter-me na consciência do universo. É o que mais quero.

– É um processo místico, então?
Claro. Claro que é. Os poetas já se queixaram demais. Já trouxeram problemas demasiados. Até já se converteram em políticos. Neruda. Devia chamar-se Pablo Neo-buda. Esse é o seu nome verdadeiro. Já era com um Buda político. Paulo de Rocque, que era um gênio, foi morto no Chile pelos programas políticos. Então, é preciso retirar-se da política e chegar à metamorfose da alma.

– Colin Wilson diz que os artistas são o inconsciente coletivo do planeta. E se perdem a esperança, o planeta perde também.
Você disse que o poeta tem que experimentar a vida, e agora diz que os poetas são a consciência do universo… o poeta não tem que experimentar a vida, o poeta deve deixar que a vida o experimente. O poeta não é o inconsciente coletivo, mas ele transmite o inconsciente coletivo. Quando o poeta não transmite o inconsciente coletivo, se acaba a poesia. É diferente, compreende? Agora, o que é o inconsciente coletivo? O inconsciente coletivo não é uma massa de gente viva. O inconsciente coletivo é tudo o que o homem foi, é tudo que o ser humano é. Não digo “homem”, porque definir o Homem pelo homem seria antifeminista. Então deve-se dizer o “ser humano” e não o “homem”. Tudo o que o ser humano foi, tudo que o ser humano é e tudo o que o ser humano será, mais a energia do sistema solar, cósmico e de todos os universos. Mais o que os magos chamavam de “agente universal”, que é a energia que sustenta o mundo. Isso é o inconsciente. Não é o inconsciente da sociedade, é limitado esse pensamento de Colin Wilson. É preciso deslimitá-lo. E preciso deslimitar o pensamento humano. (Risos) É a primeira vez que me entrevistam pela poesia! Tenho livros de poesia. Tenho Sueño de amor, No basta decir, De aquello que no se puede hablar, Pasos en lo vacío, e estão publicados, na Espanha, na Itália, na França… Mas ninguém compra poesia. Um best-seller de poesia vende 300, 500 livros. O poeta publica 50 exemplares, às vezes. Mas a primeira edição de um comics chega a 70 mil. Então invento poesia no comics, coloco um pequeno poema… Mas o que mais aprecio na poesia, o que me entusiasma, são as entrevistas sobre poesia, porque enfim posso dizer coisas que nunca disse antes.

– O que conhece da poesia brasileira?
Não a conheço. Nos anos 1950, no Chile, conhecia-se uma poetisa brasileira chamada Adelaida Petters Lessa. E estava apaixonada por um poeta homossexual que se chamava Fernando Birre, argentino. E se está vivo, está velhíssimo, porque se apaixonou por Henrique Lignes e por mim. A Henrique fazia declarações… “Não me amas”, e chorava. Mas o adorávamos. E Adelaida Petters Lessa estava apaixonadíssima por ele. E depois encontrei-a em Paris, gorda e reluzente, só comia frutas e chocolate. E Henrique havia lhe enviado uma carta com uma semente, dizendo que era para Diana Caçadora. E me disse: “Eu sou Diana e esta semente me deixou grávida”. Estava grávida pela semente que Henrique lhe enviara por carta. Foi a única poetisa que conheci.

– Vicente Huidobro…
Sim, admirei-o muito. Altazor é um grande poema.

– Foi uma influência?
Eu sou uma pessoa esquisita. Sou um excelente público, veja. Vivo numa biblioteca e cinemateca, tenho 5 mil filmes. Pego dois filmes por dia, às vezes um. Oito livros por dia. Mas ninguém me influencia. Você vê, no cinema ninguém me influenciou, na poesia não, na literatura também não. Não estou influenciado. Sou impermeável às influências. Devo ser um monstro! (risos). Não gosto de batata frita, nem de chocolate. Todo mundo gosta de chocolate, eu não. Sou esquisito. Não bebo álcool! Sou louco. Não fumo. Não me drogo. Eu gostei muito de Huidobro. Huidobro era genial. Era um gênio. Mas para mim o maior poeta em língua espanhola é Antonio Porcha, que escreveu Voces. É o grande poeta metafísico da língua espanhola. A tal ponto que os únicos que souberam descobri-lo foram André Breton e Roger Calois na França, que o traduziram. Era muito pobre, destes que não têm camisa, e escrevia Voces. Frases que vinham a ele. E é metafísica, formidável. Ele influenciou muito Roberto Juarroz. O mestre de Juarroz foi Porcha.

– Você diz que não tem influências…
Sim, mas eu gosto muito de poesia. No Chile há um poeta chamado Rosamel Del Valle. É um grande poeta, dos maiores. Eu tenho a sorte de meus livros venderem. Então todos os meus direitos autorais no Chile eu cedi para que publicassem a obra completa de Rosamel del Valle. Porque é uma maravilha. Um poeta surrealista maravilhoso. Mas poucas pessoas o conhecem. E, para mim, ele é o maior de todos. Contemporâneo de Neruda, e amigo de Humberto Días Casanueva, outro grande poeta, que também caiu no esquecimento por causa de Neruda. Neruda silenciou a todos que não eram políticos.

– Você gosta da poesia de Neruda?
Residencia en la tierra. Os 20 poemas de amor y una canción desesperada me dão urticária. Mas Residencia en la tierra é genial.

– O que pensa de Bataille e Sade?
Os franceses apresentam Sade como uma maravilha. A coisa boa de Sade é que em relação ao sexo, ele usou a imaginação e elaborou todas as possibilidades do sexo cruel e masoquista, principalmente cruel. Isso é admirável. Mas isso é tudo. E quando fala de política é chatíssimo, entediante. Você vai pulando… quem pegou quem e como, se o pai comeu a filha, se a filha deu pro tio, se o tia comeu a mãe, se a moça que iria parir teve as pernas amarradas para não parir, se o menino foi empalado… todas essas coisas que são bastante fantásticas, porque abrem a mente, mas num campo muito obscuro. Então não se pode chamar isso de poesia. E Bataille é bom, um grande estudioso.
“A experiência interior” de Bataille se aproxima da experiência da poesia como você a coloca?
Vou dizer-lhe uma coisa de verdade. A poesia francesa nunca foi além de Lautréamont, que é o único que me parece realmente grande, não em Os cantos de Maldoror, mas sim em outros escritos nos quais se coloca de forma positiva. Lautréamont é extremamente negativo, mas tem poemas absolutamente positivos, e são excelentes. Para mim a França já está em decadência cultural há muitos séculos. Eu os admiro, sabem falar muito bem, mas possuem uma inteligência anal. A França, enquanto poesia, não diz nada para mim.

– E o cinema, também é poesia?
Sim. Glauber Rocha, por exemplo, no Brasil, procurou a poesia. Seu cinema mesclava a literatura, a linguagem, com uma linguagem óptica.

– É isso o que você busca no seu cinema?
Não sei o que busco.

– Por isso buscas…
Por isso busco. Este ano vou levar Psicomagia ao cinema. Será um cinema terapêutico. Vou sair da arte… Se não tem conteúdo, uma imagem não serve para nada. A linguagem pela linguagem não me interessa. Por toda parte temos a imagem pela imagem. Para que eu necessitaria de fazer cinema para mostrar isso? Este céu? Para quê? É preciso colocar algo, para que a linguagem nos dê algo. A linguagem, como a poesia, deve produzir um impacto transformador. Deve transformar-me.

– A poesia o tem transformado?
Sim.

– Qual a relação dos quadrinhos com o cinema, com a poesia?
São artes diferentes, com princípios que se assemelham. O cinema, como o conhecemos, é passivo. Agora, com o lançamento do dvd, já pode parar o filme, voltar atrás. Se você vê passar uma mulher muito bela, pode detê-la, voltar atrás, observar seus quadris, seus seios… e depois continua. Pode repetir uma cena de efeito especial, ou uma que gostou muito. Com o dvd, o espectador se tornou mais ativo. Mas na verdade no cinema o espectador é passivo. Nos quadrinhos não, porque o movimento completo não é dado. Num quadro o personagem levanta o punho, e no outro acerta outro personagem no olho. Então você precisa fazer o percurso do punho na sua mente. Os quadrinhos funcionam por saltos. O leitor é mentalmente ativo. É uma outra arte, com outras leis. E a poesia é uma outra arte. Porque penetra através de imagens traduzidas por palavras. A poesia é uma tentativa, quase condenada ao fracasso, porque tenta dizer com palavra o inefável, aquilo que é silencioso, aquilo que está além da palavra. A palavra buscando expressar o que não é a palavra. É de se ficar louco.

– Mas alguns conseguem…
Sim, claro. Vou ler o poema que escrevi hoje de manhã:

A ave que traspassa minhas recordações
Seu vôo se faz perfume
No centro dos sonhos mora um canto
Os sólidos reflexos do mundo visível
Dão um caráter legal a todos os seus ecos
Naquilo que não sou, encontro o néctar
Através das feras, minha alma se pronuncia
Em qualquer cadeira, posso chegar a um cometa
Os paquidermes do amor e os do ar
Flutuam sobre os telhados como globos festivos
Nos repiques do cérebro brilham luzes
Anunciando a emergência do diamante.

Esse foi o poema que escrevi hoje. Escrevo todo dia de manhã, porque transforma o dia. É igual a colocar um cubo de açúcar numa xícara de chá – o sabor se espalha em todo o resto.

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