Em 2002, Waly Salomão me procurou para sugerir que eu publicasse um livro do Rogério Duarte, designer gráfico inovador (autor do cartaz de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, entre outros) e um dos expoentes da Tropicália. Narlan Matos estava trabalhando com Rogério na sistematização do seu arquivo. Claro que aceitei na hora. Trabalhamos por vários meses na organização do livro, com a ajuda preciosa da Mariana Rosa e toques fundamentais do Waly, e depois trouxe o Rogério, que morava em Salvador, para o Rio, para ver a organização final. O livro, “Tropicaos”, trazia alguns textos fundamentais de Rogério, como “Notas sobre o desenho industrial” e o até então inédito “A grande porta do medo”, um relato sobre a tortura que ele sofreu em 1968. Aproveitei a viagem de Rogério ao Rio para fazer uma entrevista na sala da minha casa, uma conversa sobre design, tropicália e poesia:
– Rogério, durante a sua trajetória, você sempre foi um radical defensor do desenho industrial, muitas vezes em oposição à arte dita “pura”…
Sim. No meu texto Notas sobre o desenho industrial, por exemplo, ali está toda uma estética fanática da negação da arte. Era uma posição muito influenciada pela discussão do design internacional, dos grandes teóricos do Arts and Crafts, da Bauhaus. Havia uma idéia que existe um mundo artesanal e um mundo industrial. Então naquele texto eu sou um fanático apologeta da negação do gratuito. Ou seja, para mim interessava qualquer coisa apenas na medida que servisse para alguma coisa, que tivesse uma função. A idéia do funcionalismo, da racionalidade, que eu havia herdado daquelas escolas, mas que adotei até porque fazia todo um sentido pessoal para mim. Porque eu me lembro, por exemplo, de quando ia para a casa dos irmãos Campos, achava um desperdício todos aqueles livros de arte que eles tinham. Todos eles cheios de criações, e acabava tudo muito restrito. Eram distribuídos para um número muito pequeno de pessoas. Eu era muito mais interessado em fazer um produto que fosse para um supermercado, por exemplo, onde todo mundo poderia ver, do que fazer arte.
Essa era um pouco a ideia do design na época, de que a arte acabou. Arte era uma coisa burguesa, pertencente a um determinado momento pré-moderno, pré-industrial. O que era uma visão um pouco sectária, eu diria. Hoje eu cheguei a uma espécie de meio-termo. Mas naquele tempo não me interessava a arte, aquela coisa da dependência, que é o mais terrível. E muitos artistas ficavam presos naqueles circuitos, de vernissages, críticos. Aquilo me enojava. O que é a arte? O inútil. E eu era designer, o que me interessava é o útil. Então eu dizia “quando uma coisa não serve pra mais nada, vira arte”. O carro ficou velho, não serve mais para andar, vira arte. O texto já não diz nada prático, vira literatura. No fundo era uma visão muito primária, e os críticos mais inteligentes, da esquerda mais sofisticada, o Leandro Konder e o Carlos Nelson Coutinho, me esculhambavam…
– Mas essa postura, por mais sectária que fosse, foi necessária para a construção de sua linguagem, não?
Aquilo fazia parte de uma renovação necessária. Eu me lembro o quanto me irritava a idéia de que um pintor qualquer começasse a fazer cartazes, porque eu dizia “isso é falsificação”. Eu estava tentando criar uma linguagem de design gráfico no Brasil, e eles estavam pegando uma coisa que já existia num outro contexto de produção individual, num quadro, e reproduzindo e transformando em cartaz. Que era a tal idéia de reprodução barata. A reprodução barata não tem a qualidade da pintura, a textura da tela, a tonalidade. Então há uma perda na medida que se reproduz o original. Então eu dizia, vamos acabar com o original. Vamos trabalhar a linguagem do próprio meio de reprodução. Isso já havia ocorrido na história da arte. Na gravura, por exemplo. Inicialmente, os desenhos eram feitos por pintores, e havia uma artesão gravador que cavava aquilo na madeira, para reproduzir em série. Havia a caligrafia pessoal do pintor, mas um xilógrafo copiava o desenho e reproduzia aquilo em série. Eram meios de reproduzir uma coisa que era produzida de outra maneira. Posteriormente, com Goeldi, por exemplo, o próprio desenhista já se atinha às linguagens próprias da madeira. E isso era o ideal do design, deixar de buscar seu repertório em fontes artesanais anteriores. Cada meio tem suas próprias especificidades. Ou seja, como no início da gravura, havia no design uma briga entre a natureza do original e a reprodução. E assim, toda reprodução implica numa degeneração. E eu tentava romper com isso, trabalhando com as especificidades do offset, por exemplo. Assim como Goeldi liberta a madeira de sua função de citar os desenhos, eu queria libertar o offset. Usar os chapados, as retículas, a tipografia. Criar a minha linguagem com isso. E nisso talvez consistisse a modernidade do que eu fazia, embora não fosse o gênio inventor dessa teoria.
– É esse uso da linguagem do offset que causa o espanto do cartaz de Deus e diabo na terra do sol?
Sim. Neste cartaz eu utilizo toda uma nova concepção de cor, que é fruto de toda uma pesquisa profunda. O offset se caracteriza pela pouca quantidade de tinta. Então, se você pega uma fotografia, por mais bela que seja, e apenas a reproduz sem conhecer direito as especificidades do offset, e se você imprime só o vermelho, fica desbotado. Há uma perda muito grande. Então você tem que estudar o meio que trabalha e tirar dele o máximo partido. E foi o que eu fiz. Por exemplo, no cartaz do Deus e diabo na terra do sol, era o vermelho que assustava. Para dar mais colorido, conseguir uma cor mais forte, possibilitar que o espectador sinta a tinta, eu formei o vermelho com seus componentes, utilizando a teoria da cor moderna. Misturei o magenta com o amarelo, que são os componentes em termos de pigmento para formar o vermelho. E aquilo causou um efeito muito forte. O que era a concretização de toda minha pesquisa sobre design. E assim eu consegui que meus trabalhos passassem a ser não mais uma referência de uma outra coisa, mas obras em si, reais. O papel expressava.
Há uma história interessante sobre esse cartaz, porque mesmo Glauber, com toda sua clarividência, demorou para sacar o que eu estava querendo. Ele dizia “Rogério, você é bom, não tem que ficar fazendo cartazes”. E eu pensava, “pobre Glauber, não sacou nada…” Depois eu pude brincar com ele, e dizer: “Gostei do filme que você fez para o meu cartaz…” E essa inversão é importante. Muita gente diz “o poster do filme”. Não é o poster do filme, é o poster do próprio poster. Muita gente olha o poster e não vai ver o filme. Então eu tenho um contato direto, estou falando com quem está vendo esse pôster. E é o mesmo com as capas de discos. Ou seja, a capa perde seu caráter puramente acessório, de ser uma cobertura cuja função seja apenas proteger uma coisa, para se tornar uma mídia, um suporte. Nesse ponto eu digo que fui importante, porque eu assumi a postura de ser um designer. Havia aquela idéia de artes superiores e artes inferiores, o que é uma discriminação, e eu era um militante radical contra isso. Eu dizia, não importa a pintura, a pintura é para os pintores. E eu não sou pintor, sou um designer.
Agora, junto com isso, vinha toda uma angústia, um medo. Você vê, são as contradições. Você luta por uma coisa, e depois que ela acontece, começa a ter uma postura contra ela. Quando ela descamba, exagera demais para um lado, diz “também não era tanto assim”. Você é pela revolução, e depois a vê destruindo uma série de coisas que eram importantes… Isso aconteceu com o William Morris, por exemplo. Ele foi o pai do design inglês, do Arts and Crafts, e no final ele diz que a máquina é o mal. No Notas sobre o desenho industrial, eu falo sobre isso, que aquele período foi a primeira explosão de mau gosto da história, que é o kitsch. O kitsch é isso, a reprodução em série de coisas que eram aristocráticas, com todo seu repertório, o que causa um barateamento. E isso levou o William Morris a reagir negativamente em relação a tudo que ele havia conquistado. É natural esse medo, de estar contribuindo para a perda de muitas coisas que são culturalmente interessantes.
– De qualquer forma, essa sua postura radical de afirmação das artes gráficas foi muito importante para o desenvolvimento do design gráfico brasileiro…
Certamente. Se eu me olhar agora, como se fosse outra pessoa, porque nós temos que ter sempre uma grande humildade, mas não se pode também negar o eventual valor que você possa ter estabelecido, senão é uma destruição de si próprio, eu verifico que tive uma real importância na afirmação da dignidade do trabalho gráfico. Eu briguei feio com muita gente por isso. Deixa eu dar um exemplo: quando eu trabalhava com o Aloísio Magalhães, ele me indicou para fazer a direção de arte do Laboratório Maurício Vilela. Então eu fiz um projeto, e apresentei para o bam-bam-bam do pedaço, um diretor. E ele ficou raivoso, gritando “isso é fascismo, você deveria ter me apresentado várias possibilidades para eu escolher uma”. E eu respondi para ele: “o senhor é médico, por acaso você apresenta vários diagnósticos para o paciente escolher um? Isso aqui que eu estou fazendo é sério, rapaz. Isso é ciência. Se você quer vários, chame vários profissionais, cada um tem uma linguagem. A minha é esta. Eu não tenho que fazer outro.” Daí eu fui demitido. Ao longo da minha vida, eu gramei muito por causa dessa postura radical que adotei.
O Glauber sacou qual era a minha briga, e por isso ele foi propiciador da minha obra-prima. Pela confiança, pela fé que ele depositou em mim. Quando ele me chamou para fazer o cartaz do Deus e diabo na terra do sol, já haviam dois cartazes prontos. E que tinham sido feitos exatamente dentro daquela mentalidade que eu queria destruir. Um era do Ziraldo, com um canganceiro que repetia o seu estilo, que era um Ziraldismo. O outro do Calazans Neto, que era uma gravura, um Calazansismo. Cada um havia colocado no cartaz o seu ego, o seu estilo, e que não era o de Glauber. Mas eles eram duas figuras com muito espaço na época, e haviam feito os cartazes sem que o Glauber encomendasse e mandado de graça para ele. Mas o Glauber recusou os dois, e disse que quem ia fazer o cartaz era eu. E ele me deu toda liberdade, tanto que foi viajar para a Itália, e só viu o cartaz quando já estava pronto.
– E por que você parou de trabalhar mais assiduamente como designer?
Eu tive uma carreira acidentada, na medida em que fui preso e torturado, e assim posto fora de combate muito cedo. E isso teve um lado ruim, mas teve outro bom também. Porque hoje eu percebo que, se não continuei produzindo uma obra gigantesca, fiz poucas coisas que puderam ser melhor apreciadas. Tanto que hoje, quando me pedem um trabalho, eu recuso dizendo que pertenço a uma época. Fiquei com esse orgulho. Senão posso queimar o filme. Minha linguagem pertence a um momento histórico e eu não sou um comerciante. Estou ligado a uma revolução, a um período, a uma geração. E o meu trabalho todo faz parte disso, e eu não vou ficar como um sobrevivente de mim mesmo, um designer fazendo coisas que não tem nada a ver com os objetivos daquela revolução. O meu trabalho ficou muito privilegiado por isso, essa coerência misteriosa que eu como pessoa não possuía, mas que de alguma maneira tinha a intuição. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde as pessoas iam sacar que era aquela a linguagem do meu tempo, e não aquelas que eram feitas antes. Que a linguagem deles já estava morta, eles apenas lutavam inutilmente por sua permanência. Até hoje é essa ainda a briga. É como o xadrez, se você fala para um jogador sobre qualquer mudança no design das peças, ele treme nas bases. No entanto Max Ernst, Marcel Duchamp, o pessoal da Bauhaus, todos eles tentaram uma nova linguagem para as peças de xadrez, como houve mudanças no estilo das letras. Mas o conservadorismo dos jogadores bloqueia. E eu continuo esse trabalho, que é lento e árduo. Mas que é a função do artista de certa maneira, compatibilizar o homem com o mundo. Tirar o fosso entre o de dentro e o de fora. A arte tem essa função, de você poder humanizar a modernidade, se integrar com os novos meios de comunicação, os novos suportes. Criar essa linguagem que vai construir a harmonia, destruir a contradição entre sujeito e objeto.
– Rogério, depois do desenho industrial, me parece que a atividade a qual você permaneceu mais fiel em sua vida foi a poesia…
A minha relação com poesia sempre foi uma coisa inexplicável. Eu sempre tive uma volúpia terrível, nunca soube o que queria fazer. “Sede de viver tudo”, como dizia Nelson Ângelo naquela música, que a gente gostava tanto na época. Isso você pode encontrar nos meus textos, essa inconformabilidade com a limitação humana, a vontade de ser Deus. Querer ser eterno, querer ser tudo. Nunca houve nada que eu não quisesse ser. Matemático, capoeirista, amante. E poeta também, por que não? Porque a poesia sempre foi algo muito forte, eu sempre li muito. Tanto que até hoje sei poemas inteiros decorados.
Mas o meu problema é que eu nunca consegui escrever poemas certinhos, bem feitos dentro de um cânone. Poemas de outras pessoas que quando eu lia me impressionavam, até talvez pela sua não originalidade. Porque para você escrever realmente bem, tem que ser não muito original, tem que estar, de certa maneira, vinculado a algum conceito já pré-existente. De belo, por exemplo. E então, nessa poesia beletrista, o grau de redundância é maior. E os meus textos, desde a adolescência, eram tão loucos, tão absurdos. Eu tentava escrever de uma forma mais convencional, mas não conseguia. E por isso eu fiquei fascinado assim que li os primeiros textos do Artaud, porque nele havia a questão da doença mental, da incapacidade de formular, daquela angústia de se expressar do louco. E eu logo me identifiquei, porque aquilo trespassava o meu texto também. Tanto que tem aquele poema meu para o Ezra Pound, que é exatamente sobre isso: “Como é que é meu caro Ezra Pound? Vou acender um cigarro daqueles para ver se eu consigo lhe dizer isto. Andei fazendo um pouco de tudo aquilo que você aconselhou para desenvolver a capacidade de bem escrever. Estudei Homero, li o livro de Fenollosa sobre o ideograma chinês, tornei-me capaz de dedilhar um alaúde, todos os meus amigos agora são pessoas que têm o hábito de fazer boa música, pratiquei diversos exercícios de melopéia, fanopéia e logopéia, analisei criações de vários dos integrantes do seu paideuma. Continuo, no entanto, a sentir a mesma dificuldade do início. Uma grande confusão na cabeça tão infinitamente grande confusão um vasto emaranhado de pensamentos misturados com as possíveis variantes que se completam antiteticamente.”. Mas, no fim, fui descobrindo que essa própria dificuldade miraculosamente depois pode vir a se constituir uma certa qualidade…
– A sua poesia, nesse sentido, é um pouco precursora da poesia dos anos 70, que possuía essa aceitação de elementos estranhos, o que possibilitou uma linguagem muito liberta. O que é uma característica da dita poesia marginal, essa aceitação das dificuldades de expressão individuais como uma possibilidade.
É curioso, quando você coloca isso, eu percebo que aconteceu com o texto o mesmo que com o desenho industrial, a aceitação das limitações do veículo. Aquilo que era um defeito, acaba virando uma qualidade. Aquilo que era privação de uma coisa, acaba virando na verdade a afirmação de outra. Eu lembro quando era jovem, e lia poetas como o Afonso Romanno de Sant’Anna, por exemplo, e ficava espantado como esse cara conseguia escrever direitinho. Eu nunca conseguirei isso. Mas eu busco uma coisa do indizível que só esse bem-fazer já impede. O indizível tem que ser maldito, no sentido de que não se pode jogar luz na treva sem destruí-la. A treva tem que ser treva. Tem uma citação de Al Rallash que o Waly Salomão adora, “a obscuridade para mim é luz bastante”. E essa obscuridade, no fim, acaba virando uma opção. Porque na medida em que a coisa é aceita pelo establishment, que consegue encontrar seu lugar dentro dele, ela também abre mão do futuro.
– Essa corajosa aceitação da marginalidade, do risco em lugar ao estabelecimento, talvez tenha sido uma das características das melhores pessoas do seu tempo.
Certamente. Hoje eu percebo que não é eu, que não há eu, o que há é o tempo. O tempo que passa pela gente. Então aquele momento dos anos 60 foi maravilhoso. Havia uma coisa engraçada, um brilho, as pessoas esperavam alguma coisa da gente. Aquele foi um momento, uma situação astrológica, histórica, sei lá, que nos possibilitou essa ruptura. Havia na minha geração uma postura muito auto-afirmativa, e afirmativa do Brasil. Havia um orgulho muito grande, a idéia de que somos nós a vanguarda mundial, não os Estados Unidos ou a Europa. Esses caras tinham que vir aqui aprender com a gente, e não o contrário. E o contrário é o que acontece normalmente no Brasil, até hoje. Você espera que alguém faça algo lá fora e só então se sente autorizado a fazer também. Para romper com isso, inicialmente, foi necessário toda uma introjeção, uma antropofagia. A gente devorou tudo que se fazia no mundo, estudou, até que, de certa maneira, teve um pouco de coragem. Porque havia figuras geniais, Glauber, Oiticica, Caetano, Gil, Torquato, e todo mundo se sentia capaz. Agora sem grande idéia que fosse uma coisa totalmente original. Mas foi o que possibilitou o Cinema Novo, a Tropicália, a minha revolução gráfica. Estávamos vinculados a algumas coisas, mas, como no cartaz do Deus e diabo na terra do sol, em que eu uso a tipografia suíça, o que era a chamada boa gráfica na época, mas na escolha da cor, da foto, do tema, de tudo, colocava um vigor que era o que o Brasil representava. Não uma ignorância, mas a reapropriação do mundo e uma síntese. E a volta da linguagem popular. Eu vivi uma época muito bonita, um momento criativo, em que todos nós éramos geniais. Como na revolução russa. Você pega Maiakóvski, Iessiênin, Eisenstein, aquilo tudo era muito criativo. E vejo que agora é possível estar se esboçando um renascer da criatividade. Ou seja, que esses burocratas já encheram o saco o bastante.
– Como no poema de Lawrence Ferlinghetti, “estou esperando um renascer do maravilhoso”…
Exatamente. Então nesse momento atual, com toda essa angústia, poder ver melhor o maravilhoso nas coisas. Não ficar do lado daquilo que foi sufocado, nem daquilo que foi o sufocador. Mas simplesmente ter resistido, e poder durante um momento ainda ter um alento.