Já que é dia de Natal, uma entrevista com tema condizente: o Erotismo. Quando pensamos os quatro eixos temáticos da revista especial da Azougue, em 2006-2007, o último foi sobre “invenção/experiência”. Fizemos uma série de entrevistas sobre o corpo, o erotismo, o fantástico. E uma dessas conversas foi com Eliane Robert Moraes, uma das mais instigantes pesquisadoras sobre o tema. Para isso, fomos, eu e o Pedro Cesarino, para a casa dela e de Fernando Paixão, o autor do maravilhoso “25 azulejos”, um dos livros de poesia que marcaram a minha juventude:
– Por que não há uma presença marcante de literatura erótica no Brasil?
Mário de Andrade fala no prefácio de Macunaíma que se dois brasileiros estão juntos, estão falando porcaria, mas que nós não temos um erotismo literário organizado como têm os franceses, os alemães, os ingleses… Então que história é essa que o brasileiro fala porcaria o tempo todo? Eu adoro isso, porque realmente no Brasil o erotismo literário é uma coisa escondida. A melhor metáfora disso é aquela história de achar um poema pornográfico do Manuel Bandeira no meio de um livro do Pedro Nava. É necessária toda uma pesquisa. Mas se a gente pegar os últimos vintes anos, tem muita coisa boa acontecendo por aqui.
– Há todo um crescimento mundial de literatura erótica no mundo. Lolita Pille, Cem escovadas antes de dormir, Catherine M., a própria Bruna Surfistinha. De repente, o erotismo, embora um erotismo light, tomou de assalto as listas de best-sellers…
São duas coisas, talvez uma até puxando a outra. Uma coisa é o erótico comercial. Eu não gosto de dividir entre pornografia e erotismo, para mim tudo é a mesma coisa. Mas são esses livros e autores que você citou, que têm uma demanda de grande público. E que mostram que existe uma tendência internacional interessante de ser pensada, que são os textos confessionais, devassando a intimidade de alguém. Não importa se é inventado ou não, mas aparece dessa forma. E esse confessional acaba sendo muito moralista algumas vezes, e excessivamente preso a um realismo. Eu contraponho isso a uma ficção erótica que é da ordem da fantasia mesmo, do delírio. Sade seria um grande expoente disso, que fala do erotismo de uma forma que é um pouco o impossível. E daí aparece Bataille, Hilda Hilst. No Brasil hoje tem a Verônica Stigger. Ela tem um conto que acho genial, onde chovem caralhos do céu. Então é da ordem da fantasia. É o delírio erótico.
– Você disse que há muita coisa boa acontecendo nos últimos 20 anos. O que é erotismo hoje?
É muito difícil pensar isso. O que é erotismo hoje? É praticado por quem? Não sei. Algumas pessoas têm uma visão catastrófica disso, uma certa nostalgia da revolução sexual da contracultura. Mas eu não concordo inteiramente. Pode ser que o erotismo ainda, para muitas pessoas, seja o que sempre foi. Que tenha uma força vital, transformadora, subversiva até. Quando se diz que o erotismo perdeu a sua carga de subversão, estamos pensando em que erotismo? O do outdoor, do axé? Tem muitas outras coisas acontecendo. Experiência erótica é uma experiência fundante da nossa humanidade.
– O engraçado é que, quando você fala os 20 últimos anos, é um período pós-contracultura. Não são muitos os autores da contracultura que foram marcada-mente eróticos, embora na vida fossem…
Existem dois tipos de autores eróticos. Os que criam algo erótico eventualmente, e os que só pensam naquilo. Se você pega essa geração da contracultura, você vai encontrar textos eróticos em Ana Cristina César, no Armando Freitas Filho, na Ângela Melin. O Rubens Rodrigues Torres Filho é um caso exemplar, ele tem poemas que vão direto ao assunto, que não são velados. Mas tem outras figuras, como o Roberto Piva, o Glauco Mattoso e a Leila Miccolis, que mergulharam realmente no erotismo. O erotismo permeia quase todas as suas obras. Não por acaso, são autores ligados ao homoerotismo.
O problema para quem estuda literatura erótica é definir o que é literatura erótica. Literatura erótica não é o erotismo na literatura, porque erotismo na literatura está em todo lugar. Difícil abrir um livro e não encontrar em nenhum momento erotismo, seja mais velado ou bem pornográfico, ou mais místico, ou burlesco. O José Paulo Paes tem uma expressão interessante sobre isso, naquela antologia que ele organizou de poemas eróticos. Ele diz que vai trabalhar com poemas sexuais explícitos. Que por vezes podem ser alusivos, mas não tanto que não se reconheça o sexo. Eu acho que a literatura erótica é aquela na qual você pode reconhecer realmente. O véu não pode ser muito espesso.
– No belo prefácio para Nadja, do André Breton, você fala que o livro retoma a Paris fantástica de Gerard de Nérval. Que é um fantástico dentro da cidade, já urbano. E, no Brasil, me parece que sempre que pensamos o fantástico, pensamos no meio rural, no interior, no sertão, no Amazonas. Por que essa dificuldade de se trabalhar o fantástico na literatura brasileira?
É muito difícil a gente pensar sobre isso, mas eu acho que existe sim uma obrigação de um certo realismo na literatura brasileira. Talvez pela mesma razão que o negócio do erotismo também fica um pouco acanhado, esse erotismo mais fantástico. Parece que existe sempre uma espécie de superego realista que não deixa essa coisa vir. Isso é um tema muito interessante, porque uma das perguntas que sempre se faz sobre literatura brasileira é porque ela não acompanhou o boom de literatura fantástica da década de 1970. Tirando o J.J. Veiga e o Murilo Rubião, não há praticamente nenhum outro autor que tenha feito fantástico no Brasil nessa época. É como se essa superação do rural no Brasil, a modernização e urbanização do Brasil implicasse em não ter que se mexer mais com essas coisas. Pela mesma razão que temos dificuldade em ir para o folclore, para conversar com certas raízes populares, estabelecer conversas internas. Eu tenho muita vontade de fazer uma pesquisa sobre o erotismo na literatura oral brasileira. Porque é interessante poder pensar o erotismo em si, e não através da formação da literatura brasileira, do que já está consolidado. Justamente para tirar um pouco de lugar.
– O fantástico e o erótico parecem explorar os limites do humano.
Sim, eles vão ara além dos limites, porque o que o fantástico e o erótico fazem é nos lançar para aquilo que o humano não é. Isso é a alteridade de Marquês de Sade. Não tem nada a ver com a violência e a crueldade que está na obra de Sade. Porque aquilo que está na obra de Sade, ou de um Bataille ou de uma Hilda Hilst, é aquilo que não é Sade. Esses autores falam do que o ser humano não é. E o realismo fala do que é. Por isso eu digo, é esticar a fronteira e saltá-la. É explorar uma região que é impossível. Então é inteiramente diferente, é uma perspectiva totalmente outra. E eu concordo que no Brasil nós temos uma grande resistência em relação a isso. Não só com nossos autores. Sade é um autor difícil de ser lido aqui. Temos que empurrar, porque as pessoas resistem muito, têm medo. Porque elas lêem o fantástico como se fosse realismo.
Uma vez eu fui dar uma conferência sobre Sade, e contei aquelas cenas, como quem está lendo um conto de fadas: “Então cada libertino tomou cem garrafas de vinho em um jantar e depois foram para uma orgia com 400 pessoas”. É um conto de fadas adulto. Quando eu terminei, a primeira pergunta que fizeram era se isso era verdade. Eu respondi que não sabia, mas que se eu tomasse cinco garrafas de vinho não conseguiria transar nem com meu próprio marido. Elas levaram ao pé da letra o Sade, o que é inacreditável.
– O Roberto Piva diz que o hedonismo e o erotismo são opostos. Como você pensa isso?
Eu acho que pode existir um erotismo que se aproxime do hedonismo. Quando o Piva fala isso, ele está se alinhando a uma tradição do erotismo que chamamos de erotismo moderno, fundado por Sade. Mas se você volta para os textos mais antigos, para uma erótica mais antiga, você tem um erotismo que é de exaltação dos amantes, do ato erótico. Uma alegria erótica que pode parecer muito inocente para um Sade. É uma coisa que depois se torna impossível, você não tem mais lugar para esse tipo de erotismo.
O Piva é um herdeiro de Sade, de Bataille, de um certa perspectiva erótica que é moderna e contemporânea, que faz parte do mundo moderno. E que tem a ver com a impossibilidade que surge no século xix de se falar daquilo que é o bem. Porque aparece muito fortemente a idéia de mal nessa época. Você vai ver isso em Sade, em Baudelaire, no próprio Flaubert. Essa exaltação do mal é porque é impossível você manter um discurso de tudo aquilo que pode ser figura do bem. Porque é tal o enunciado oficial dessas figuras do bem, que o artista se vê obrigado a olhar para outro lado. Então a partir do século xix, e sobretudo no século xx, o erotismo se ligou à morte, à violência, à crueldade.
Agora, quando se lê a Priapéia ou Safo, o que se encontra? É outra coisa. Para nós, se soubermos ler, antes de mais nada nos passa uma impressão de um espaço de liberdade. Não são as mesmas questões que estão em jogo. A associação entre erotismo e morte é absolutamente moderna, e é contemporânea também. Mas quando você volta para as manifestações mais antigas, você vê que tem coisas muito diferentes. Você vê que há figuras do erotismo como festa, por exemplo. Essa ligação é muito recorrente. O erotismo como guerra, mas como uma guerra brincalhona, lúdica. Ou o erotismo oriental, mais ritualizado. Realmente são experiências outras. O que me surpreendeu quando fui ler Safo de Lesbos e a Priapéia é isso. Você tem um erotismo muito forte, uma coisa obscena mesmo, mas que não tem essa escatologia. Não tem essa coisa de chafurdar nesse lugar. Não é isso. A gente parece muito viciado em pensar o erotismo a partir dessa chave escatológica, mas há outros caminhos. Eu gosto muito dos autores do século xvi, xvii, que juntam o erotismo com o burlesco, que escreviam com a intenção de fazer rir. Isso também é um vetor para o qual existe um freio na literatura hoje.
– Então Sade e Bataille estão trabalhando com uma tentativa de alargar a experiência humana ou combater uma restrição anterior à experiência? Uma tentativa de quebrar valores vigentes?
Você tem uma impossibilidade da arte de enunciar esses valores, porque eles passam a ser enunciados por um discurso com o qual os artistas não mais compactuam. Antes, isso ainda era possível. No século xviii, por exemplo, enquanto o Sade estava pensando o mal, Diderot estava escrevendo coisas maravilhosas falando da virtude, do bem. Rousseau também. Era ainda possível sustentar um discurso sobre a virtude. O Sade pode até estar pensando também sobre a virtude, mas pelo avesso. Por isso ele é tão contemporâneo, ainda nos toca tão fortemente. Mas nem o Sade, nem Bataille, nem a Hilda Hilst estão fazendo uma apologia do mal. Porque essa é a leitura errada e moralista que se faz desses autores. Eles estão simplesmente vasculhado um outro lugar em reação a um discurso que já não é mais possível sustentar.
– Bataille diz que a experiência interior só pode ser positiva em relação a si mesma. Ela não pode se positivar na religião, na estética, na moral ou na comunidade em geral.
Bataille tem uma idéia de mal que é de uma singularidade. E quando esses autores todos estão falando da experiência do mal, não tem nada a ver com campos de concentração ou a violência política. É uma outra ordem de experiência. E também não existe uma proposição neles. Inclusive, um problema que a gente enfrenta com esse tipo de autor é que todo mundo está sempre buscando qual é a proposta dele. Eu não vejo proposta nenhuma. Existe, sim, uma investigação. E, no caso do Bataille, é interessante a questão de que a experiência é uma coisa, o discurso é outra. O discurso pode tocar na experiência, mas não a reproduz integralmente. Ele fala que o que conta é o vento, não o enunciado do vento. Não por acaso é um autor que trabalha muito com o limite da palavra. A palavra tem um limite, há o que não pode ser dito. O Bataille diz que a palavra “nada” é uma palavra impossível.
– E o Bataille consegue realizar essa experiência, ir para além da pura trama intelectual?
É difícil a gente responder isso, porque mesmo quando um escritor está contra o seu tempo, ele está dentro do seu tempo. A gente não escapa da nossa história. Bataille é uma figura inteiramente inserida na sua época, mesmo que muitas vezes brigando com certos vetores do seu tempo. Ele é um homem do século xx, está pensando a partir dos dilemas do século xx. Ainda que ele vá fazer essa evocação da experiência anterior, dos grandes místicos. Mas essa é a mesma leitura que Nietzsche fez da tragédia, do Dionísio, ou que Artaud fez dos taraumaras. O que é interessante é esse desejo, essa busca de uma alteridade. Mas que parte sempre de um certo lugar, que é o seu mundo, o seu tempo.
– E esse erotismo de Sade, Bataille, não vira também uma prisão? Não seria necessário inventar novas formas de erotismos?
Acho que sim. Mas é possível? Essa seria a questão. Conseguimos fazer isso? O grande medo hoje é não edulcorar a experiência. Porque nós temos toda uma indústria cultural edulcorando a experiência, domesticando ela. É tudo tão normalizado que nós tememos reproduzir essa diluição. Então como é possível hoje dizer o erotismo e o amor sem edulcorar? Como seria impossível sustentar o discurso de um Werther hoje, por exemplo? Porque você vai ouvir essas mesmas palavras nas piores canções do rádio. A indústria cultural se apropriou de tal forma desse discurso que ele nos soa banal. Mas fica a pergunta de como poderíamos dizer o amor sem ser via um dilaceramento? E isso para o erotismo é mais grave ainda.
– Você acha que a gente vive um momento erotizado? Paul Goodman dizia que a Playboy existe para a pessoa perder o tesão pela vizinha. Esse erotismo presente, publicitário, erotiza ou deserotiza o mundo?
Eu acho que o problema é a proliferação de imagens. Porque o que que é a fantasia erótica? Que experiência é essa? E quais são as condições para que a fantasia possa existir? A proliferação de imagens nos impede de fantasiar. Porque a fantasia para existir ela precisa de um vazio. É de vazio que nasce uma imagem. É preciso o nada, uma vacância, para que haja fantasia. E a proliferação de imagens sexuais anestesia, e também impede essa vacância, que é a condição para o aparecimento da fantasia que diga respeito a minha pessoa, a minha singularidade. Tem uma passagem na história de Juliette, que é a libertina mais interessante do Marquês de Sade, em que ela conta como procede para criar todos os delírios sexuais que ela cria. E ela dá uma espécie de receita. Parece uma coisa zen-budista: “Você limpa a sua mente, passa 15 dias sem ter nenhum pensamento, não deixa que nada atravesse sua cabeça”. Então é uma espécie de ascese. Você vê Sade, que é um escritor do excesso, realizando uma ascese. Em Bataille isso também está presente na idéia de experiência interior. Por isso que ele vai buscar fontes orientais.
Há um fenômeno crescente no Brasil, e muito presente nos Estados Unidos, que é o de clubes de sadomasoquismo, que é um tipo de experiência erótica em grupo totalmente normalizada. Não tem nada a ver com Marquês de Sade ou Masoch, esse sado-masoquismo que está se difundindo por aí. Porque eles são escritores e, como tais, são criadores de fantasia, e não de ação. Mas tem a ver com a necessidade de se voltar para um erotismo que seja muito violento. É quase como se só isso pudesse ser um apelo à carne. Porque para corpos muito anestesiados, você precisa de um tratamento de choque. O que eu acho mais grave é que essas coisas são muito moralistas. Elas são muito regradas. Não ritualizadas, e sim regradas. O problema outra vez é essa regra que antecede o fato, do mesmo jeito a imagem antecede a fantasia. Já está dado. Isso é um obstáculo à experiência. Eu sou batailliana nesse sentido. Experiência é singularidade.