Entrevista com Luiz Carlos Maciel

Maciel, como abertura, você poderia falar um pouco da sua família, da sua infância e juventude?

Eu nasci em Porto Alegre, filho de um advogado. Ele era bancário, pobre, mas estudou direito e se formou já com 30 anos. Nem me lembro se meu pai já era advogado quando eu nasci. E minha mãe era professora de escola primária. Também classe média. Eu nasci em 1938. A única memória que eu tenho da minha primeira infância é de 1941. Eu tinha três anos de idade, e houve uma grande enchente em Porto Alegre. Uma enchente histórica, as ruas viraram rios. E é a única imagem que vem na minha cabeça dessa época, a imagem que eu via da janela do nosso apartamento. Era um apartamento de segundo andar, algo assim, num prédio pequeno, e eu sempre ficava na janela. E naquele dia vi um rio passando onde era a rua. As pessoas andando de barco. A enchente foi braba mesmo. Daí eu não me lembro de mais nada.
Quando eu tinha tipo cinco anos, o meu pai, que trabalhava no banco Banrisul e no instituto dos bancários, conseguiu uma licença, não sei que arranjo ele fez, para conseguir vir para o Rio de Janeiro. Porque o grande sonho dele era morar no Rio de Janeiro. Ele tinha fascínio pela cidade. Ele tinha conhecido o Rio de Janeiro na Revolução de 30, do Getúlio Vargas. Ele era apenas um adolescente, e estava com uma turma de colegas mais ou menos da idade dele, num café na cidade de Pelotas, quando um sargento do regimento local chegou no café e disse: “Você, você, você…”. Pegou todos os garotos. “Vem que nós precisamos de vocês pra fazer a revolução. Vai tudo virar soldado”. E eles foram. Meu pai ficou na dúvida, no vou, não vou, mas ele tinha curiosidade. Aos 16 anos, imagina, fazer uma revolução… Então foi. Botaram uniforme nele, porque o Getúlio levou o Rio Grande do Sul todo, inclusive o que tinha de Exército Nacional lá. Todos os militares aderiram à revolução. Aí deram fardas para os meninos, botaram um mosquetão na mão de cada um, um trabuco daqueles. Começou a ter um treinamento, todo dia, como faziam com recruta, só que a entrada dele foi antecipada. Aí eles vieram de trem para o Rio de Janeiro, tiveram uns tiroteios no caminho. Meu pai contava sempre que tinha um amigo que morreu. Que estava no tiroteio conversando com o amigo, e de repente ele viu que o amigo não respondia, tinha levado um tiro. Mas aí, chegou aqui no Rio, imediatamente abandonou a unidade militar e caiu na gandaia. Ele e a garotada toda. Copacabana, praia, Lapa, cabaré… E eles todos tiveram certificado de serviço militar. Ou seja, o período de serviço militar dele foi a Revolução de 30, depois não precisou mais fazer serviço militar porque ganhou um certificado. Aí, voltou pra Porto Alegre, e voltou com uma imagem paradisíaca do Rio de Janeiro. Era um mito pra ele.
Depois, ele com 30 anos casou com a minha mãe, que tinha 20, e quando eu era pequeno ele já falava do Rio de Janeiro o tempo inteiro. Como o Rio de Janeiro era maravilhoso. Copacabana era o próprio paraíso, na concepção dele. E outra lembrança de imagem que eu tenho de pequeno, mas aí eu já devia ter mais de cinco anos, foi de olhar pela janela desse avião bimotor que nos trazia e ver a paisagem do Rio de Janeiro à medida que o avião se aproximava do aeroporto Santos Dummont. Maravilhoso. Meu pai disse: “Olha aí, olha que lindo!” E a gente olhava a maravilha que era o Rio de Janeiro, as montanhas, o mar, a Lagoa. Tudo, né? Meu pai já tinha conseguido fechar um apartamento em Copacabana, não era na Avenida Atlântica, na beira da praia, mas na N. S. de Copacabana, onde ficamos uns quatro anos. Eu voltei pra Porto Alegre com uns 10 anos. Assim, eu fiz o meu primeiro aprendizado de colégio, ler e escrever, que se chamava primário, no colégio Guido de Fontgalland em Copacabana.

Isso antes de Copacabana virar um bairro importante da cidade, né?

Copacabana era longe à beça do Centro da cidade, mas era o balneário. As pessoas todas do Rio de Janeiro, para ir à praia, iam para Copacabana. Ipanema era uma selva. Leblon, nem se fala. Em Copacabana havia civilização, tinha bonde, pegava-se o bonde e ia até o centro da cidade. Ele vinha por Flamengo, Botafogo até Copacabana. E todo mundo ia para a praia. Quando chegava fim de semana a praia de Copacabana ficava entupida. A faixa de areia era bem menor do que é agora. A pista também era aquela pista única, estreita, tanto é que quando o mar ficava de ressaca ia até os edifícios da Avenida Atlântica. A água entrava nos bares, entrava no cinema, era uma bagunça. Depois fizeram o aterro, as duas pistas, aumentaram a faixa de areia da praia enormemente. Lembro que diziam assim: “o mar ainda vai se vingar disso”. Mas isso nunca aconteceu. Ao menos até agora. Engraçado que eu gostei do Rio de Janeiro também, de Copacabana, da praia, dos passeios, ir no Corcovado, ir no Pão de Açúcar Quando nós voltamos pra Porto Alegre, eu herdei do meu pai essa imagem mitológica, paradisíaca do Rio e o projeto de vir morar aqui também.
Tanto é que quando eu já tinha 15, 16 anos, adolescente, comecei a passar as férias na cidade. Meu pai tinha uma prima, dona Norma, que era casada com o Paulo Tapajós, da Rádio Nacional, que além e redigir programas fazia música e cantava. Pai do Maurício Tapajós, do Paulinho Tapajós e da Dorinha. E aí eu ia para o apartamento deles, da tia Norma, que era prima do meu pai, e ela me botava no quarto de empregada e me dava a chave dos fundos. Quer dizer: liberdade total. Eu saía pelo Rio de Janeiro e voltava na hora que eu quisesse. Quando eu voltava, entrava pelos fundos, passava pela cozinha, não incomodava ninguém, ia para o quarto de empregada e dormia.

E como você começou a se envolver com cultura?

Bom, isso foi depois da minha volta para Porto Alegre. Eu já tinha desde essa época o gosto pelos livros. Eu antes de ser alfabetizado já adorava livros. Teve uma livraria em Copacabana que ia fechar e eles fizeram uma grande liquidação. Eu me lembro que ainda era criança, entrei lá de tarde, sentei no chão e comecei a olhar todos os livros. Quando chegou a hora de fechar, o livreiro achou tão interessante aquele menino que ficava vendo livros durante horas e horas que me deu um de presente. Era um livro de colégio, sobre história natural. Aí eu fiquei felicíssimo, cheguei em casa com um livro.

Seu pai era leitor?

Era leitor, mas moderadamente. Gostava muito de poesia. Tinha um caderno com poemas que ele gostava e que selecionou e digitou. E quando eu já com 16 ou 17 anos, eu comecei a escrever poemas. Eu não tinha máquina de escrever, escrevia tudo a mão. Aí me lembro que ele pegou e datilografou, fez um caderno com meus poemas.

Quer dizer, ele gostou e respeitou, teve uma abertura. Porque na época dele isso devia ser uma coisa mais complicada…

Gostou, achou bonito o filho ter vocação pra escrever. Isso eu já estava grandinho, já era adolescente, no colégio Anchieta, em Porto Alegre. O Anchieta era um colégio de jesuítas, e é interessante que minha educação tenha sido feita lá porque minha mãe era católica. Ainda que não fosse fanática, não ia nem a missa… Católica brasileira. Mas ela achava que a melhor educação quem dava eram os padres, os jesuítas. Tinha esse mito de que os padres jesuítas eram os melhores mestres. Então ela queria porque queria me botar no colégio Anchieta. Meu pai não se incomodava tanto, apesar de ser comunista. Não era membro do partido, mas, filosoficamente, se apresentava como marxista-leninista, ateu e materialista. Mas era um homem assim… cordato. Aí a mulher fazia tanta questão que lá fui eu estudar num colégio jesuíta, como a minha irmã, que foi para um colégio de freiras. Então nós tivemos uma educação totalmente católica. Os jesuítas nessa época eram muito de direita, falar mal de Karl Marx era praticamente obrigatório. E meu pai, quando soube disso, e eu tinha uns 14 anos, me deu, sem que minha mãe visse, livros como o Manifesto Comunista, Socialismo Utópico ou Socialismo Científico, de Engels. Uma porção de livro comunista. Não me doutrinou, não tentou fazer minha cabeça, nada. Só aproveitou meu amor por livros… E eu fui influenciado por isso. Apesar de ser supercatólico, virei meio comunista. Lembro que no curso científico eu fiz uma prova de história e falei bem do Marx. Quase fui expulso! Meu professor, que era leigo, disse assim: “você tem sorte por eu ser leigo, agora, não repita essa façanha porque você vai ser expulso se o professor for um desses padres”.
E essa escola tinha ensino de arte?
Teve quando eu já estava saindo. Aconteceu uma coisa interessante, mas antes deixa só eu acrescentar uma coisa sobre o reacionarismo dos jesuítas: em 1964, quando teve o golpe militar, eles foram todos para a esquerda. A Ordem dos Jesuítas, Santo Inácio, foram todos para a esquerda, foram uma das ordens mais atuantes da Teologia da Libertação, aquela onda de renovação que teve na igreja católica na época. Quando, nessa época, eu voltei a Porto Alegre, eu estranhei demais os jesuítas terem fama de comunistas. Os outros católicos diziam que eles eram comunistas. Mas voltando, eu fazia o curso científico. Naquela época, você fazia quatro anos de ginásio, aí tinha três anos de curso científico ou clássico. Você escolhia. Se quisesse fazer uma carreira científica, tipo engenharia, medicina, ia para o científico. Se você fosse fazer letras ou direito, ia para o clássico. Havia uma certa onda assim de que as cabeças mais capazes iam para o científico, e os mais burrinhos se conformava em ir para o clássico. Então, eu logo resolvi ir para o científico, porque sempre me achei inteligente. Mas lá no científico, no terceiro ano, aconteceram duas coisas que me influenciaram demais. A primeira é que tinha uma aula de filosofia, dada por um padre, e que naturalmente enfatizava o tomismo de São Tomás, mas ele dava uma história da filosofia. Começava com os gregos, passava pela idade média, com São Tomás de Aquino, que é Aristóteles misturado com o cristianismo… E eu me interessei por aquilo. A outra coisa foi que os padres resolveram montar um espetáculo de teatro com os alunos. Era uma peça que eu não vi nunca mais, esqueci até o nome do autor, que se chamava: “Os séculos aos pés de Maria”. A peça começava com Adão e Eva e ia até um futuro distante pra mostrar a importância de Nossa Senhora, Maria, para a religião católica, e para a salvação conduzida por Jesus Cristo, mas cuja preparação era feita por Nossa Senhora. Eu ganhei um papel numa cena num século do futuro, e como eu já estava no último ano de colégio, ganhei um papel de pai de dois garotinhos que eram das séries mais baixas. E a peça estreou no Teatro São Pedro, que é um teatro tradicional de Porto Alegre, construído no século XIX, em estilo italiano, clássico. Foi um público de estudantes, mais ou menos da nossa geração, principalmente meninas. Tinha o colégio de freiras, né, onde inclusive minha irmã estudava, e as meninas foram todas assistir à peça. Quando eu entrei em cena, éramos dois meninos em cena, e um deles me chamava de “papai”. O teatro veio abaixo numa gargalhada impressionante. Eu era um fedelho de pai dos dois garotos. Mas na época eu não me incomodei, inclusive gostei do teatro. Aí conheci um colega um ano mais velho que eu. Então, foi isso, não foi no meu último ano, foi no penúltimo, porque eu fiz esse colega um ano mais velho que eu, o Fernando Peixoto. Peixoto depois tornou-se crítico, escreveu muitos livros sobre teatro, e foi ator e diretor também. Mas na época, o Fernando conhecia o pessoal dos grupos amadores de Porto Alegre, principalmente os grupos de teatro universitário, que era um grupo formado por estudantes universitários que se interessavam e queriam fazer teatro. Então eu entrei pra esse grupo, e comecei a fazer parte da turma dos jovens de teatro em Porto Alegre, onde fiz uma porção de peças. Ao mesmo tempo, me tornei sócio do clube de cinema de Porto Alegre, onde passavam filmes clássicos, o que naquela época era uma coisa difícil, muito ao contrário de hoje em dia, em que você nem mais precisa comprar, você baixa tudo.

Ao mesmo tempo, nesses clubes, além do filme, havia o debate e o encontro também…

Havia um crítico em Porto Alegre, que assinava P. F. Gastal, e que era o fundador e diretor do clube, e ele redigia boletins com informações sobre cada filme que era exibido. E eu guardava essas coisas que ele escrevia pra me informar sobre os filmes. Aí depois comecei a comprar livros sobre cinema, teatro, peças e filosofia.

E a poesia? Você nessa época chegou a frequentar o Grupo Quixote, não foi?

Sim. Como eu falei, meu pai costumava datilografar meus poemas. Ele acabou me dando uma máquina de escrever, para não precisar mais fazer isso. Mas ele não só fez esses cadernos com meus poemas datilografados, como levou para um colega de trabalho dele que era poeta. Chamava-se Pedro Geraldo Escosteguy. Ele como poeta assinava apenas Pedro Geraldo, Escosteguy era seu nome de médico, que era sua profissão. O Pedro Geraldo fazia parte desse grupo literário de Porto Alegre, o Grupo Quixote. Era formado por poetas e também por alguns prosadores, ficcionistas. Quem era meio líder do grupo naquela época era o Sílvio Duncan. E no Quixote tinha também um cara muito engraçado, já mais velho, chamado Heitor Saldanha. Ele foi alfabetizado quando tinha uns 25 anos de idade. Era telegrafista ferroviário lá em Santa Maria. Quando o conheci, naquela época, já estava com quase 50 anos, mais ou menos, e havia se tornado um poeta. Um grande poeta. E uma grande figura também. Bebia em quantidades industriais. Na zona de meretrício de Porto Alegre tinha um bar que não fechava nunca, que ficava sempre aberto, porque durante a noite, a madrugada, atendia os boêmios, e de manhã começava a atender os trabalhadores. E o Saldanha de vez em quando ficava dois dias dentro desse bar, só biritando. Ele tinha escrito um romance muito bom, chamado “Terreiro de João-Sem-Lei”, que é ambientado nesses ambientes da zona do meretrício.
Eu comecei a frequentar o grupo. No Quixote tinha autores mais velhos, já com família formada, casados, como o Sílvio Duncan, o Pedro Geraldo, o Vicente Moliterno, mas tinha além de mim, o Manoel Walter, o Fernando Castro e o Walmor Marcelino. Esses três eram solteiros. E eram jovens. E eram boêmios. E foi me juntando a eles que eu acabei na boemia. Porque daí o programa era ir no final da tarde ao Bar do Beto, onde todos se encontravam, os casados mais velhos e os solteiros mais jovens, e depois dos mais velhos irem para a casa, nós quatro íamos ver um filme e na saída íamos para um bar chamado Gruta da Imprensa, que também ficava aberto a madrugada toda, e como o nome indicava era frequentado por muitos jornalistas que trabalhavam de noite e usavam lá como ponto de encontro. No Gruta da Imprensa, a gente ficava conversando e mostrando nossos poemas uns para os outros. Ouvindo os elogios e as críticas. Algumas vezes as críticas eram duras. Uma vez estava o Heitor Saldanha lá conosco, e chegou um rapaz, porque a gente recebia muitas visitas de poetas que passavam por lá para mostrar seus poemas também. E ele trouxe um poema escrito à mão. Cada um de nós foi lendo, chegou no Heitor Saldanha e ele começou a elogiar: “Que beleza! Que grande poema! Olha esse verso: O êmbolo das ondas…”. O rapaz ficou espantado, perguntando o que é que ele tinha lido mesmo. E o Heitor Saldanha: “O êmbolo das ondas”. E então o rapaz pegou o papel e disse: “deixa eu ver aqui. Não, Saldanha, não é isso, eu escrevi: o embalo das ondas”. E o Saldanha: “Embalo das ondas? Então é uma merda!” Era esse o clima. E eu era o mais novinho, tido como uma espécie de Rimbaud da turma. Quando tinha uns 16, 17 anos, cheguei a publicar alguns poemas numa antologia do Quixote que contou com um prefácio do Raymundo Faoro.

Você cursou filosofia na faculdade. Como foi a escolha?

Quando terminei o curso no colégio Anchieta, meus pais perguntaram qual curso que eu queria fazer a seguir. Minha mãe queria que eu fizesse engenharia, enquanto meu pai queria que eu fizesse direito. Eu disse que não queria ser engenheiro, advogado, médico, nem nada disso: “eu quero fazer filosofia”. Filosofia é uma coisa que não dá grana nenhuma, a única possibilidade que existe é seguir a carreira acadêmica e virar professor. Mas eu tinha o teatro, por outro lado. Eu sou peixes com ascendente em gêmeos, ou seja, são dois signos duplos, então eu tenho essa variedade de interesses… Daí, acabei fazendo vestibular pra filosofia. Entrei no curso de filosofia, onde encontrei e fiz amizade com um jovem professor, que tinha 27 anos, Gerd Bornheim, e era o primeiro ano que ele lecionava na faculdade de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O Gerd era de Caxias do Sul, de uma família alemã que tinha imigrado para o Brasil e vieram para o sul, como muitos dos europeus que vieram para cá, porque tinha um clima parecido, onde no inverno era um frio de rachar. Não me lembro o que os pais do Gerd faziam. Aí eu, no teatro, fiquei amigo Antonio Abujamra, que faleceu há pouco tempo. Fiz algumas peças pro Abujamra me dirigir no teatro universitário. Aí o Abujamra me convence a dirigir uma peça com ele atuando. Eu dirigi primeiro uma peça em um ato, de nome “Os Cegos”, e foi quando eu inventei que gostava de teatro de vanguarda. Não gostava de teatrão, enquanto o Abujamra já gostava dos dois tipos. Ele era um homem de teatro para qualquer coisa, fazia tudo. Mas aí eu fui fazer “Esperando Godot”, de Samuel Becket… Isso em 1957 ou 58. Eu já tinha 20 anos, por aí. E nós montamos a peça em Porto Alegre e ela fez um grande sucesso. A minha direção foi elogiadíssima, o Instituto Estadual do Livro me encomendou um texto para uma coleção de livrinhos finos, imitando os Cadernos de Cultura do MEC, só que do Rio Grande do Sul, com autores de lá. Eu fiz um pra eles, chamado “Samuel Becket e a solidão humana”. Foi o meu primeiro livro. Lá pelas tantas, o Gerd conseguiu para nós de fazermos o “Godot” lá em Caxias do Sul. Ele acompanhou o “Godot” todo, tanto que os primeiros ensaios, antes de irmos para o teatro, foram no apartamento dele. Ele tinha um apartamento que tinha sala e dois quartos. E ele guardava tudo que tinha num dos quartos, que era a biblioteca enorme dele, onde ficava também o aparelho de som dele e os livros de arte. Ele tinha deixado a sala inteiramente vazia, então a gente ensaiava lá. E o Gerd conseguiu de fazermos o Godot lá em Caxias do Sul, conseguiu hotel para todo mundo, menos eu, que ele levou para a casa dele. Fiquei hospedado na casa da família dele. Tive essa honraria porque era diretor e era amigo dele. Estavam a mãe, o pai, a irmã dele, a família toda. E eu passava o dia inteiro sem entender uma palavra do que eles conversavam, porque dentro da casa só se falava alemão. O Gerd falava português, naturalmente, mas falava melhor ainda o alemão. Então o Gerd, depois de ter feito o curso de filosofia em Porto Alegre, ganhou logo uma bolsa pra estudar filosofia na Alemanha, onde foi aluno e assistiu palestras de grandes filósofos como Merleay-Ponty e Bachelard. Quer dizer, estava atualizadíssimo. E era muito jovem. Voltou de lá com 27 anos de idade, foi com uns 23… Daí, começou a dar aulas.

Ele tinha uma cabeça aberta?

Tinha uma cabeça super aberta. Inclusive ele foi uma influência muito grande sobre mim, sobretudo no que diz respeito a Sartre. Porque ele gostava muito de Sartre. Ao contrário dos alemães, que esnobavam os franceses. Inclusive, existe uma anedota de que avisaram ao Heidegger de que o Sartre gostaria de conversar com ele, ao que Heidegger responde: “não converso com jornalistas”. Mas o Gerd lia tudo, em alemão, em francês e em inglês. E ele escreveu muito sobre o Sartre, e exerceu muita influência sobre mim. Mas eu saí dela, mais uma vez por causa do teatro. Isso porque o meu grupo de teatro foi a um festival de teatro universitário organizado pelo Paschoal Carlos Magno, que foi embaixador, deputado, um homem importante, e que adorava teatro… Então, ele fazia esses festivais para os jovens, adorava jovens e tal. Então, fomos pra Recife apresentar o espetáculo que estávamos montando, “A cantora careca”, do Ionesco, que era vanguarda, dirigida pelo Abujamra. Aí, quando encontrei no Recife o pessoal do festival, o Paulo Gil Soares, que era baiano, que era da Bahia. Aí, eu contei para o Paulo que, na vinda, meu voo fez escala no Rio e em Salvador, coisa rápida, mas que na volta eu gostaria de dar uma paradinha em Salvador pra conhecer a Bahia, depois dar uma paradinha no Rio também, para dar uma curtida, e depois eu volto pra Porto Alegre. Aí, o Paulo Gil Soares me disse que, chegando em Salvador, eu procurasse um amigo dele chamado Glauber Rocha, que ele iria me dar uma assistência lá. Aí, fui pra Salvador. Peguei um taxi no aeroporto, pedi pro taxista me levar pro hotel mais barato, e ele me levou pro hotel São Bento, na Ladeira de São Bento, no centro de Salvador. Saltei, era horrível o quarto, hotel velho pra caralho, peguei o telefone e liguei pro Glauber, e falei: “oi, Glauber Rocha, meu nome é Luiz Carlos Maciel, sou de Porto Alegre, conheci o Paulo Gil em Recife e ele me deu seu telefone para você me dar uma assistência aqui na Bahia, que eu não conheço…” Aí, o Glauber perguntou onde eu estava e eu falei, “no hotel São Bento”, ao que ele me respondeu que dentro de meia hora estaria na porta do hotel para me buscar. Aí, o Glauber chegou, com seu terno de linho branco, como bom baiano, olhou pro quarto, fez uma cara de nojo e disse: “você não pode ficar aqui nessa espelunca, você vai pra minha casa!” Eu fechei a mala e ele me levou pro apartamento dele, com a mãe dele, dona Lúcia.

E ele já era cineasta, já havia filmado “O Pátio”?

Não, ainda não, ainda ia fazer o pátio. Mas ele me levou pra lá e fez tanto discurso sobre como toda a nova cultura brasileira ia surgir de Salvador, na Bahia, e que portanto eu tinha que morar na Bahia, que eu fiquei pensando que esse baiano ou era um gênio ou era louco, ou talvez seja as duas coisas. Eu ia ficar três dias em Salvador, acabei ficando uns quinze dias. Ficava na casa dele, comia de graça. A mãe dele tinha uma pensão em frente onde eu comia sem pagar nada. O Glauber me levava pra cima e pra baixo, me apresentou todo mundo, João Ubaldo, Calazans Neto. Todo mundo da Bahia, a baianada toda eu fiquei conhecendo. E ele me convencendo a ir morar na Bahia. Fomos pra escola de teatro, que era dirigida pelo Martim Gonçalves, onde estava um velho crítico de teatro, Brutus Pedreira, que era gaúcho e fazia 50 anos que não voltava a Porto Alegre. Estava lá, velhinho já, me apresentou a biblioteca dele inteira, era livro que não acabava mais, e eu inclusive cheguei a subtrair alguns, uma coleção completa de Bernard Shaw, encadernada. Então ele me disse que arranjaria uma bolsa de estudos pra mim na Escola de Teatro, para eu ficar na Bahia.

Isso era na época que o Edgard Santos foi reitor da Universidade da Bahia?

Isso. Ele era um cara incrível. Chamou uma equipe incrível para a universidade. Lina Bo Bardi, Anton Smetak… Ele fez a Escola de Dança, a Escola de Música, com o Koellreutter, a Escola de Teatro. Tudo ali no Canela, perto da Praça Castro Alves. E foi assim que eu fui pra lá. Fiquei um ano, aluno da Escola de Teatro, com uma bolsa porque o Martim tinha assinado um convênio com a Fundação Rockfeller.

Antes disso, como era essa Escola de Teatro, qual era a proposta?

Era basicamente um curso de formação de atores, pelo método Stanilavsky, escolhido pelo Martim, e muito influenciando também pelo The Method, do The Actors Studio. O Martim adorava ir pra Nova York… O Actors Studio era tipo um Teatro de Arena, e as primeiras fileiras, no primeiro andar, em baixo, ficavam os atores que participavam dos trabalhos do Actors Studios, e discutiam nas cenas, “é isso, é aquilo”. Aí no final o diretor chegava e dava a palavra final, escolhendo os atores do jeito que ele achava que devia ser… No segundo andar, ficavam os visitantes: eram curiosos e pessoas de teatro. Mas essas não podiam se manifestar, ficavam só assistindo, ouvindo os debates. Era quase um ensaio aberto, mas só com a turma efetiva do Actors Studios. E o Martin vivia lá. Estava vendo tudo, como é que os caras faziam. Então, a Escola de Teatro da Universidade da Bahia tinha essa orientação, que era o sistema Stanilavsky. Fazia memória sensorial, memória subjetiva, memória objetiva. Depois que o Martim fechou parceria com a Fundação Rockfeller, ele quis me mandar pra fazer um curso de direção. Porque ele fez umas aulas com os alunos interessados em direção, e eu me inscrevi. Aí ele achou que, entre os alunos, o que tinha mais jeito pra direção era eu, e me mandou pra fazer o curso de direção nos Estados Unidos, no Carnegie Institute of Technology de Chicago. E eu aproveitei e fiz o curso de playwriting, que foi a origem da minha atividade como professor de roteiro. Aprendi com Arthur Willmore, que tinha sido amigo do Eugene O’Neill e de uma porção de gente famosíssima do teatro americano. Eram velhos já, e ele tinha ido pra esse emprego de velho lá em Pittsburgh. Ele era um professor de roteiro. Ele passava a aula toda com um cigarro na mão, mas sem acender. Ele era um tabagista inveterado, e o médico tinha dito que se ele não segurasse a onda com o cigarro ele morreria logo. Parecia uma Hannah Arendt, que fumava o tempo inteiro. E quando dá aula, dá fumando. Ele então, quando terminava a aula, sentava na cadeira, relaxava e acendia o cigarro. Porque o médico tinha permitido que no final da aula ele fumasse um cigarro. Então era o prazer dele, era usufruir daquele cigarro.

Você chegou a voltar depois pra Escola de Teatro da Bahia?

Sim. Eu tinha até um compromisso. Quando eu ganhei a bolsa, eu tinha assumido o compromisso de depois dar aula na escola por pelo menos dois anos. Então eu ainda fiquei dois anos na Bahia dando aula na Escola de Teatro. Tive excelentes alunos, embora não tenham ficado tão famosos. Os mais famosos que se formaram na Escola de Teatro eram da época do Martim: Helena Ignez, Othon Bastos. Eu tive uma ouvinte que depois ficou famosa, que foi a Yoná Magalhães. A história da Yoná Magalhães é interessante. Eu namorei uma moça da sociedade baiana, me casei com ela e tudo. Meus dois filhos são dela. Ela se chamava Yone Argolo. Então ela conhecia todo o pessoal rico da Bahia, e eu acabei conhecendo um playboy superfamoso por lá, chamado Luiz Augusto Mendes. Ele era filho do João Mendes, que tinha feito o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que era uma organização destinada a evitar a reforma agrária no Brasil. Ele era latifundiário da área lá de Itabuna, super de direita, não dava colher de chá pra reforma agrária e essas coisas. Agora, o filho dele não precisava trabalhar, o pai era riquíssimo, com as suas fazendas, latifúndios. Então o Luiz Augusto era playboy. Era farrista, vivia aprontando nas farras dele. Na época tinha os grandes bailes de carnaval do Hotel da Bahia, que era feito o baile do Theatro Municipal aqui do Rio. E ele entrou uma vez no baile montado num camelo que ele alugou de um circo que tinha chegado na cidade, vestido de beduíno.
Pois bem, o Gugu, como era o apelido dele, certa vez assistiu uma peça chamada “Society Babydoll”, que era estrelada por uma moça chamada Yoná Magalhães. O Gugu viu Yoná no palco e logo se apaixonou perdidamente. Passou a ir ver a peça todas as noites. Todas as noites mandava flores e flores pra ela, e convites para jantar e tudo, até que estabeleceu um namoro com ela. Aí a peça viajou pelo Brasil, foi pra Bahia, depois seguiu pelo Nordeste. E o Gugu, que era tão assíduo, que o Ciro Costa, que era o produtor, o chefe, perguntou se ele não gostaria de ser contratado pra ser contra-regra, já que ele estava em todas as apresentações. Assim, pelo menos ele se distraía, ainda que não fosse receber nada, já que ele não precisava. Assim, o Gugu virou contra-regra do espetáculo. Quando a turnê do espetáculo terminou, ele disse a Yoná: “casa comigo”? O velho João Mendes, pai dele, que era totalmente conservador, quase arrancou os cabelos, por achar que o filho ia casar com uma puta. Pra ele, atriz e puta eram a mesma coisa. E o Gugu encarou, ao que o pai ameaçou cortar a grana dele e mandou ele começar a trabalhar. O Gugu se meteu com negócio imobiliário, tendo os meios, e começou a faturar. E, começando a faturar, casou com a Yoná, pra ficar na Bahia com ele. Porque a Bahia que era o chão dele. Ele só sabia ganhar dinheiro na Bahia. Aí a Yoná disse assim: “minha carreira vai ficar interrompida se eu ficar com você aqui na Bahia, você precisa dar um jeito da minha carreira prosseguir”. Aí o Gugu prometeu dar um jeito e disse que ia fazer um teatro na televisão, como aquele que existia no Rio de Janeiro, com Fernanda Montenegro, Italo Rossi, Sergio Britto fazendo peças de teatro adaptadas para a TV. E que a Yoná seria a atriz principal e o diretor seria eu. E eu fiz durante meses. Eu mesmo adaptava as peças e dirigia.
Mas daí, um dia, chegou o Glauber e me mostrou o roteiro do filme que ele queria fazer, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. E ele não tinha dinheiro pra realizar. Já que eu estava amigo de um produtor em potencial, que era o Gugu Mendes, e estava fazendo o teatro da mulher dele, ele me pediu que levasse o roteiro pra ele e dissesse que teria um papel no filme para ela, Yoná. Seria o papel da Dedé, a mulher do Corisco. Eu topei, peguei o roteiro e levei pro Gugu, expliquei tudo pra ele, disse que havia um papel pra Yoná, e dei pra eles lerem e decidirem. Passam uns dias e o Gugu chega pra mim e diz que produziria o filme do Glauber, contanto que o papel da Yoná não fosse o da Dedé, e sim o papel principal, da mulher do vaqueiro. O vaqueiro é o papel que atravessa o filme todo, ao passo que a Dedé aparece só no final, junto com o Corisco. E me pediu pra transmitir essa mensagem ao Glauber, de que se ele desse o papel feminino principal para a Yoná, ele produziria o filme. Aí eu falei pro Glauber, que me respondeu que já tinha prometido esse papel pra sua namorada, Regina Rosenburgo. “A Regina vai ficar puta!” Depois de um tempo reclamando ele disse: “ah, foda-se! Depois eu faço um filme pra Regina”… E me mandou dizer pro Gugu que ele toparia dar o papel principal pra Yoná, e assim foi feito. E o Gugu era filho do João Mendes, latifundiário, presidente do IBAD, playboy, tinha o maior trânsito na direita. E o Glauber era um cineasta revolucionário, comunista. Mas ficaram amissíssimos, tão amigos que tinham um trato secreto entre os dois. Porque o confronto entre esquerda e direita se aproximava no Brasil. Então, se a direita ganhasse, o Gugu livrava a cara do Glauber, e se a esquerda ganhasse, o Glauber não deixava botar o Gugu no paredão. Eles tinham esse compromisso de se protegerem.

E se protegeram?

Acho que sim, porque não aconteceu nada com nenhum dos dois… Quer dizer, se acontecesse seria com o Glauber, porque a direita ganhou a parada. Mas o Glauber foi pra Europa. Quando engrossou o bagulho aqui, com a ditadura, ele se mandou pra Europa. Mas ele ainda chegou a fazer filme aqui antes de partir, como o “Terra em Transe”.

E como foi a produção do “Deus e o Diabo”? Foi uma produção cara pra época?

Era uma produção toda feita em externas, no sertão baiano, tudo em locação… O custo da produção era esse. Eu cheguei a acompanhar algumas cenas feitas em Salvador, mas não segui com a equipe para o interior. A minha principal contribuição para o filme foi ainda quando era um roteiro. Eu fiquei muito impressionado com a história, quando li o roteiro. Mas teve um ponto que não me agradou: no roteiro original, o personagem Manuel, após se tornar um místico e um cangaceiro, sem conseguir se realizar em nenhum desses caminhos, encontrava um destino, que era o engajamento nas ligas camponesas. O filme tinha então três partes.

Mais ou menos como Os Sertões, não é? A terra, o homem e a luta…

Sim. Mas eu não gostei da mensagem direta da última parte, de que só a politização permite a libertação do povo oprimido. E nós conversamos muito sobre isso. Ele acabou fazendo outra proposta, que no fim seria a filmada, de um final em aberto. Do filme acabar com uma corrida para o mar, como uma fuga da miséria do sertão. Esse final mostrava que era preciso encontrar um caminho, mas deixava claro que o que havia ainda era uma busca, não uma resolução.

E com o Rogério Duarte, que fez o famoso cartaz do filme, você já tinha amizade? Ele estava morando no Rio naquela época, não é?

Sim, já conhecia ele. Em 1964, quando o filme seria lançado, eu já tinha ido morar no Rio. O Glauber também. Ficamos no apartamento dele hospedados, enquanto buscávamos uma casa, e foi lá que cheguei até a contribuir para o cartaz do Rogério. Ele estava sentado numa mesa, cheia de fotos e esquadros e compassos, pensando como fazer o cartaz, quando peguei uma foto do Othon Bastos como Corisco segurando uma peixeira na frente do rosto. Era uma foto muito imponente. Mostrei para o Rogério e sugeri que usasse essa foto. Ele pegou e compasso, colocou a ponta seca no nariz do Othon Bastos e traçou um círculo Disse que era o sol. E a partir disso começou a desenhar o sol. O Rogério era um designer absolutamente genial.

Depois, você vai ser uma figura fundamental pra as revoluções comportamentais da contracultura. Como era isso nos anos 50, ou no começo dos anos 60? Já existiam indícios de uma virada comportamental?

Olha, eu já era uma vanguarda disso aí porque eu era discípulo de Sartre, e portanto existencialista. O existencialismo era uma coisa que não era simpática nem para a direita, nem para a esquerda. Porque era um pensamento libertário, mais preocupado com a liberdade individual. E o grande inimigo era a moral tradicional. A Moral. Então, eu fazia propaganda disso, discutia a liberdade individual sob a luz do existencialismo. À direita, achavam que eu era um devasso, e à esquerda achavam que eu era um pequeno burguês preocupado com bobagens, pois havia a questão social que era mais importante. Mas ao mesmo tempo eu tinha muitos simpatizantes, sempre tinha gente que se interessava pelo existencialismo, perguntava sobre Sartre, depois sobre a Simone de Beauvoir também, quando sai o “Segundo Sexo”. Então, havia um germe de uma rebelião do comportamento já naquela época. Isso estamos falando dos anos 50, começo dos 60. Que aliás, culminou em maio de 68, com uma rebelião política, mas muito contaminada por essa questão libertária.

Você disse que casou cedo, com uma mulher da sociedade baiana. Como foi lidar com isso e essas mudanças comportamentais?

Foi assim: quando eu ganhei a bolsa de estudos pra ir pros Estados Unidos, disse para a Yone que eu ia de qualquer maneira, que não iria perder essa oportunidade. E ela então disse que iria comigo. Eu concordei, ao que ela respondeu que os pais dela só aceitariam que ela viajasse comigo se nós nos casássemos. E eu aceitei me casar com ela. E foi assim que eu casei. Aí, minha primeira filha nasceu lá nos Estados Unidos, em San Diego. Hoje ela é psiquiatra lá em São Paulo.

Outro dia, fazendo uma pesquisa sobre o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, eu achei uma matéria sua sobre o Living Theatre, escrita em 1960. Você chegou a acompanhar a vanguarda do teatro de Nova York?

Ah, sim. Porque em Pittsburgh, onde eu estava, a cena era menos vibrante, buscando mais o mainstream. Broadway ou Hollywood. Agora, tinha uns maluquinhos que andavam de roupa preta, influenciados pelos beatniks. Outros meio existencialistas. Mas isso era uma minoria. Mas todo feriado uma porção de gente que ia pra Nova York de carro. Então o pessoal pregava num quadro de anúncios na universidade: “tenho vaga para duas pessoas no carro para Nova York”. Aí, pronto, eu telefonava, fazia contato e íamos, eu e minha mulher. A gente acertava um valor para ajudar na gasolina, e assim, por um preço menor que o da passagem de ônibus, nós íamos de carro pra Nova York. E daí podia ver um pouco do que estava acontecendo na cidade. Quando chegava em Nova York, aí eu ia no Living Theatre, naquele sobrado que eles tinham lá, de onde eles foram até expulsos depois. Lá eu assistia nomes como Samuel Beckett. Era um teatro de vanguarda. Eu também não ia deixar de ver Broadway, muitos musicais, que eram incríveis… Eu iria pra Nova York e não ia ver os grandes musicais da Broadway?

E sua contribuição pra imprensa, quando você começou a escrever pra imprensa?

Olha, nessa época eu era colaborador. Só fazia freelance para a revista Senhor, para o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Mas não tinha nada estável.

E como era essa relação? Na revista Senhor, no Jornal do Brasil, você passou por Reynaldo Jardim, essa turma toda? Como foi essa relação? Tinha amizade com eles?

Sim, fiz muita amizade com Reynaldo Jardim, fui amigo dele até o fim da vida. Não no final nós nos encontrávamos mais, porque ele ficava em Brasília e eu aqui.

Você já contou que começou na boêmia por causa da poesia, em Porto Alegre. E as outras drogas, maconha, ácido, como chegaram na sua vida?

Só no Rio de Janeiro, bem depois… Eu já estava até n’O Pasquim. Até a minha entrada n’O Pasquim, eu tinha mais relações com jornalistas, porque os literatos eu frequentava mais em Porto Alegre. Eu sou um literato de província. Mas eu comecei a ganhar a vida na imprensa, principalmente depois que eu vim pro Rio de Janeiro. Porque eu não sabia fazer mais nada. Eu estudei filosofia, a única coisa que eu sabia fazer era escrever, redigir. Então eu passei a conseguir emprego em copydesk, como redator, e minhas relações foram se concentrando em jornalistas. Eu fiquei muito amigo do Tarso de Castro, que já conhecia lá de Porto Alegre, e era um jornalista que conseguia beber mais do que eu. Era uma coisa interessantíssima, porque eu nunca vi o Tarso bêbado. Ele bebia em quantidades industriais, e estava sempre igual. Ao contrário de todos os outros que eu vi. Eu fui muito amigo do João Carlos de Oliveira, também, mas o Carlinhos era o oposto do Tarso, quando começava a beber era um, lá pelas tantas virava outro. Baixava uma entidade nele e ele pirava mesmo. O Tarso era sempre a mesma coisa. Mas bebia o tempo todo, não conseguia passar sem beber.
Quando eu comecei a fazer a coluna Underground n’O Pasquim, por ideia do Tarso, eu não tinha a menor pretensão de ser hippie, nem de coisa alguma. Eu simpatizava com a contracultura porque desde Porto Alegre eu simpatizava com o existencialismo. E o Norman Mailler, em seu ensaio chamado The white nigro, o negro branco, disse que o hipster, que era a palavra que ele usava, uma palavra predecessora do hippie, e que parou de ser usada – foi retomada só recentemente, mas num outro sentido – e que no original era uma coisa que remetia ao molejo de cadeira, o que designava a flexibilidade do hip contra a rigidez muscular do square. E o Norman Mailler definindo esse novo tipo rebelde, disse: é o existencialista americano. Por causa da questão da liberdade, do desejo de ser livre.
Os existencialistas franceses eram noturnos, eram sombrios, andavam de preto… Juliette Greco, musa do existencialismo francês, andava toda de preto, andava nas caves parisienses, aqueles bares no porão, escutando jazz. E agora o hippie americano, o existencialista americano é completamente diferente, se fantasiava todo colorido, não ouvia jazz, ouvia rock, gostava de dançar, de ficar dançando, gostava de tomar banho nu em cachoeira… Fazer festivais ao ar livre, Woodstock, aquelas coisas. Era um outro tipo de existencialismo. Mas os dois justificavam o seu comportamento estranho pelo mesmo motivo: liberdade. Eram livres. Então eu me interessei pelo assunto. Até jornalisticamente. Escrevi um artigo, uma matéria ou outra n’O Pasquim, e um dia eu recebi uma correspondência de um menino chamado Jacques, que estava estudando em Berkeley, na Califórnia, e que começou a me mandar material de lá. Ele me mandava publicações contraculturais, poetas da editora City Lights, de São Francisco, manifestos. E aquilo foi me interessando. Até que eu ouvi Jimi Hendrix, desbundei completamente. Me interessei por esse assunto e comecei a falar muito com o Tarso. Aí o Tarso, que era um editor muito esperto – era um editor tão esperto que quem fez o sucesso d’O Pasquim, na minha opinião, foi o Tarso – me pediu para escrever a coluna Underground, para tratar desse tema.

E quando você começa a fazer Underground, não tinha nem experimentado maconha ainda? Na Bahia, naquele período que você morou lá, não era uma droga corrente?

Não era uma droga corrente, não. Depois da coluna é que eu comecei a receber visitas de hippies, de pessoas envolvidas no underground, que me convidavam para reuniões nas casas deles, para festinhas, ou para programas outdoors, tipo na praia. E era aí que rolavam as coisas. Foi então que eu fumei, e me familiarizei com as coisas. Não só com a maconha, mas com o famoso LSD. Porque, conforme eu sempre digo, “maconha é uma Coca-Cola”. A droga forte, que modifica a cabeça das pessoas, que tem consequências, é o LSD.

E como foi essa primeira experiência com LSD?

Sabe que eu nem me lembro direito como foi a primeira… Porque foram tantas! Geralmente era na praia. Eu saía, ia para uma praia dessas do estado do Rio. Eu fiquei um tempo em Macaé, numa praia lá. Tinha uma casa que era do Claudio Marzo onde a gente ia muito também. Tomava o ácido na praia. Então, foram tantas viagens de praia que na minha memória se misturam.

E como era o LSD que vocês tinham acesso naquela época? Já tinha anfetamina misturada como hoje, essa coisa eufórica, ou era mais puro?

Olha, não sei como é que está o LSD hoje, porque faz muito tempo que eu não tomo. Faz muito tempo que LSD não me vem às mãos. Mas o LSD naquela época não tinha anfetamina. Isso aí foi uma coisa de mercado, porque o LSD era uma péssima droga para o mercado clandestino. Uma droga boa para o mercado clandestino, a melhor de todas, é a cocaína. Porque a cocaína você cheira e daqui a 20 minutos você quer cheirar de novo. O efeito passa e você tem que cheirar de novo. Então passa o tempo todo cheirando e cheirando, e consome uma grande quantidade. Tem que telefonar pro transeiro e pedir mais. Aí é um ótimo negócio. LSD, você toma uma coisinha de nada e viaja oito horas. E depois que você viaja essas oito horas, só maluco tem disposição para tomar outro e continuar. E provavelmente, se tomar o terceiro ele nem faz mais efeito. E no dia seguinte você está num estado que nem pensa em viajar. Então, um alto consumo de LSD é você tomar um por semana. Que era mais ou menos o que eu fiz durante uma época. Tomava todo fim de semana. Domingo, dia consagrado ao senhor, tomava LSD. E só, porque mais não dava. Então, que negócio é esse, do ponto de vista do vendedor? Vende uma vez por semana uma dose…

Então adicionaram anfetamina para criar outra vontade…

Para ir à discoteca, para ficar dançando a noite inteira. Aí a anfetamina é que dá o empurrão para você sair à noite, para ficar dançando na discoteca. Ao mesmo tempo que, com aquelas luzes estroboscópicas, cria um tom hipnótico e você vai viajando. Uma maluquice completa.

E por falar nisso, no sentido estético, você começou a ouvir músicas diferentes, depois que começou a consumir LSD? Você mudou a sua apreciação estética, digamos assim?

Olha, você ouve música muito melhor. É muito melhor. O grau de concentração na música é muito acentuado. Então, coisas que eu não ouvia eu passei a ouvir. Não só no rock, mas no jazz, que era minha música e continua sendo. Ia ouvindo com os ouvidos mais sensíveis, apreciando mais e valorizando mais. Todos os aspectos sensoriais da comunicação artística são reforçados pelo LSD. Nos quadros, as cores ficam mais bonitas. Você vai assistir a um espetáculo, fica mais bonito. A própria dança, qualquer coisa assim. Porque fica tudo mais bonito. Mesmo que você não faça nada, só olhe pela janela, está tudo mais bonito. Então esse aspecto sensorial das artes, nisso o LSD foi muito marcante. Menos na literatura, porque a literatura é muito pouco sensorial, é uma coisa que você lê e a página pode ficar brilhando, as letras brilhando, mas não tem importância no significado do que está escrito ali. É uma coisa mental. Então uma literatura psicodélica não é muito adequada, embora tenha existido e tenha sido usada. Por poetas, principalmente. Mas, para músicos, pintores, essas artes que tem uma base sensorial muito acentuada, aí realmente o LSD causa grandes modificações.

A sua linguagem mudou muito ao longo da coluna, foi se libertando? Foi virando uma linguagem nova, mais pessoal, ou não?

Não que eu tenha notado. Talvez eu tenha ficado mais relax para escrever. O efeito mais extraordinário do LSD que eu me lembro é que nos dias seguintes – depois isso começa a esmaecer – você se sente bem a beça. Você se sente feliz pra caralho, sabe? É uma felicidade que você não sabe da onde é que veio, porque é que você está tão feliz… Mas você está simplesmente feliz pelo mundo ser do jeito que ele é e a vida ser do jeito que ela é. É uma reconciliação total do seu espírito com a realidade: você está feliz. Então isso favorece muitas coisas, porque dá uma descontração muito grande. Aí, depois com a passagem do tempo, isso vai esmaecendo. Vamos dizer que uma semana depois você já não está mais daquele jeito.

Mas se você toma toda semana você se mantém nesse estado de felicidade…

Dizem que o próprio doutor Albert Hoffman tomava um por semana. O doutor Albert Hoffman foi o cara que descobriu o ácido, morreu com 102 anos… Até o fim da vida ele tomou ácido.

Maciel, vamos retornar um pouco, para a questão da identificação do existencialismo com a contracultura. É um tema importante para você. Poderia falar um pouco mais sobre isso?

Eu estava até pensando sobre isso agora, sobre a minha trajetória e essa identificação entre existencialismo e contracultura, e pensei o seguinte: que desde os 16 anos eu tenho uma ideia obsessiva da liberdade. A liberdade foi o que realmente me atraiu no existencialismo, de Sartre dizer que você é totalmente livre e apoiar tudo que seja liberdade. E de pensar como lidar com isso. O Sartre foi obrigado a criar a doutrina do engajement, porque, numa liberdade pura, o que você vai fazer? Nada? Vai ficar livre, “sou livre”, e acabou-se? Então Sartre diz que a pessoa tem que se engajar no que ela achar que é certo, no que ela achar que é direito. Então, propôs o engajement. E houve até um engajement mais sério do Sartre, que foi a sua união com os comunistas, com o Partido Comunista. Sartre não teve carteirinha do partido, mas fez uma união com os comunistas. Uma união que foi não só prática, como foi teórica também, como demonstra a questão de método e a crítica da razão dialética, em que ele diz que o marxismo é a filosofia insuperável de nosso tempo. E foi no que se agarraram os comunistas pra dizer que Sartre tinha se convertido ao marxismo. Mas ele disse isso ao mesmo tempo em que dizia que o marxismo necessitava que outras doutrinas, como o existencialismo, para se aperfeiçoar em algumas questões, como o problema do indivíduo, o problema da liberdade. Essa questão está tratada na “Crítica da razão dialética”.
Eu cheguei a fazer uns esquemas comparando os conceitos do “Ser e o nada” e a “Crítica da razão dialética”, e eles se correspondem. Parece que a “Crítica da razão dialética” é um “o ser e o nada” marxistizado, um “Ser e o nada” que sai do indivíduo e vai para o coletivo. Vou dar um exemplo fundamental, que é a importância do indivíduo e da consciência individual no “O ser e o nada”, é o ser para si, é a consciência, é a liberdade, liberdade absoluta do indivíduo. Na “Crítica da razão dialética” ele desenvolve a teoria do grupo em fusão, que é quando uma coletividade de vários indivíduos se funde instintivamente para uma ação coletiva, porque o objetivo dela necessita da coletividade. O exemplo dele é a Revolução Francesa, é a queda da Bastilha. Não houve nenhuma organização prévia de nenhum partido político que organizasse o povo de Paris para derrubar a Bastilha. Foi um caso de grupo em fusão. Surgiu até uma música, que foi a Marselhesa. Aí o Sartre diz assim: o máximo de eficiência na ação coletiva é o grupo em fusão. Porque depois que o grupo em fusão dá certo, ele se inversa num grupo organizado, e aí vem o partido político. Daí o partido político não ter a mesma eficiência do grupo em fusão, porque o indivíduo no partido político se subordina às determinações da coletividade. Por exemplo, o Partido Comunista: o que importa é o partido, não é o militante comunista. Então o comunista passa a virar uma peça subordinada aos interesses do partido, e às visões do partido, e embora sejam várias individualidades que tomem as decisões, o Comitê Central responde como uma entidade acima. Mas o fato é que em um partido o instinto libertário primitivo é domesticado, de alguma maneira, para os interesses que podem ser às vezes muito nobres, e no restante das vezes, menos nobre.
Eu, pra mim, na minha opinião e experiência, o meu amor pela liberdade era de tal forma maníaco, vamos dizer assim, que eu apliquei essa independência tanto na minha vida política como na minha vida espiritual. Às vezes perguntam: “Maciel, você é ateu?” Eu não sei sou ateu, às vezes eu acredito em deus. Mas eu não vou ser católico, como eu fui na infância, que aí eu não tinha mais essa permissão de às vezes ser ateu e às vezes ser teísta. Só eu sendo um homem totalmente livre é que eu posso fazer isso. Então, se há algum momento em que a fé em Deus é necessária, eu posso participar de um grupo em fusão que assegure essa existência de deus. Se não, não. Eu posso ser ateu também. Então eu sou um homem livre.
Quando a contracultura surgiu, essa perspectiva libertária era muito forte. A contracultura não tinha nenhuma cartilha. Cadê a Bíblia da contracultura? Cadê o “Manifesto Comunista” da contracultura? Cadê a “Interpretação dos Sonhos” da contracultura? Não tem, não existe. A contracultura foi um grupo em fusão. Sem predeterminação ideológica ou filosófica de qualquer tipo. Então, eu me lembro de um negócio que eu vi na Rolling Stone, quando anunciaram que os hippies tinham terminado, que já tinha passado a moda hippie, e um hippie disse assim: “Isso mesmo, já passou esse negócio de hippie, os hippies morreram: viva os homens livres”.

Foi um movimento criado pelos Diggers de São Francisco, não é?

Isso, exatamente, foram eles que criaram. “Viva os homens livres”, sabe? Com os quais eu me identifiquei imediatamente. E o meu comportamento se rege por isso. Às vezes dizem: “O Maciel é místico, tem uns voos místicos”. Outras, “Maciel é comunista”, porque fico do lado dos comunistas em algumas coisas. O Maciel pode ser tudo isso. Sou um homem livre. E se já cheguei na minha idade, agora vou completar 78 anos, assim, como é que eu vou mudar agora? Vivi livre, vou morrer livre, se deus quiser — e se é que há deus, ou o deus que se queira entender como deus. Aconteceu uma coisa interessante alguns anos atrás. Eu estive bem doente, por causa do meu enfisema, e eu estava no hospital, numa situação complicada de saúde. Tem um menino que eu sou padrinho, da Rocinha, e que ia com a mãe dele me visitar. Aí ela me aparece no hospital com um grupo de uns rapazes e umas mulheres, tudo da Rocinha, membros da igreja Deus é Amor, uma igreja evangélica. E eles tinham ido lá para orar por mim e para que Jesus me ajudasse a sobreviver àquele momento difícil e tudo o mais. E eu disse: “Tudo bem”. Fiquei na cama, eles me cercaram, fizeram um semicírculo na cama, e começaram a orar, como eles dizem, e eu achei interessantíssimo, porque a oração conforme eu fui educado na igreja católica, oração é um texto que é aprovado pela autoridade da igreja e recitado ipsis literi pelas pessoas, e eles oravam diferente, oravam ad libitum, quer dizer, cada um inventava sua oração, e cada um dizia o seu. Eu me lembrei do negócio do jazz, porque eu sou amante de jazz desde os 16 anos de idade, quando num programa de rádio eu ouvi pela primeira vez Duke Ellington, que é meu ídolo até hoje, e o jazz é isso, os instrumentistas improvisam. E havia improvisação coletiva, e havia todo tipo de improvisação, o que faz o jazz avançar é a improvisação instrumentista, o jazz não é uma música do compositor, o compositor não tem muita importância, o jazz é uma música do instrumentista. É por isso que todo instrumentista gosta de jazz, porque é aonde ele pode manifestar melhor a sua criatividade. Então, tem até o jazz moderno em que há improvisação coletiva sem tonalidade estabelecida, sem divisão de compasso, sem harmonia, sem porra nenhuma. Cada um vai pro lado que quer, e acontece. Tem bandas de free jazz em que parece que magicamente aquilo se compõe numa espécie de ação comum em fusão, diria o Sartre. Então, eu achei parecida a oração dos evangélicos, tinha esse improviso, essa liberdade, e sinceramente fiquei emocionado. Meus olhos ficaram úmidos deles estarem ali fazendo aquela oração louca, porque uns gritam mais que os outros, uns falam mais que os outros. Aquela misturada, aquela coisa, sessão de free jazz. E aí no final eles perguntam pra pessoa: “Você aceita Jesus?”, que é uma coisa que na cabeça deles, se a pessoa aceita é porque aderiu à igreja deles, e se não aderiu tem que dizer que não aceita. Mas nessa situação, a pessoa pergunta pra mim se eu aceito Jesus eu não podia dizer “não”. Eu aceitei. E fiz um texto sobre isso que fecha o meu livro mais recente, “O sol da liberdade”, e até comentei com a minha editora: “Esse último texto vai causar muita estranheza, muita crítica, isso é completamente diferente do resto do livro”. Mas eu disse para ela que eu sou um homem livre, e aquela história realmente aconteceu, e na hora me deu vontade de dizer. E não quero esconder isso de ninguém. Pelo contrário, que seja aberto a todo mundo.

Você disse que utilizou dessa liberdade total também no campo político. Nunca foi filiado em nenhum partido?

O Partido Comunista tentou me filiar duas vezes: na Bahia, quando comecei a colaborar com um semanário que era do Partido, chamado A Folha da Semana, dirigido pelo jornalista Geovaldo Matos, que é um grande cara. Fiquei amicíssimo dele. Eu ia lá, escrevia tudo dentro dos conformes. Aí, um dia, o Geovaldo chegou assim pra mim: “Maciel – ele falava sorrindo – não é escolha minha, é tarefa, recebi a tarefa de te convidar pra ser militante do Partido”. Ele morreu de rir, nem esperou minha resposta.
Ele só falou pra cumprir a tarefa…
Eu ri junto com ele, e ficou por isso mesmo. Na hora que ele chegou lá no Partido Comunista, disse: “Oh, o Maciel não quis entrar”. Depois, aqui no Rio, eu frequentei durante muito tempo o apartamento do Leandro Konder, que era do Partido. O Carlos Nelson Coutinho, que era meu amigo desde a Bahia, também frequentava muito aqueles encontros. Eventualmente Ferreira Gullar ia lá, ia gente que não era do Partido, mas eram considerados simpatizantes, como o José Guilherme Merquior, que ainda era meio de esquerda na época, porque não tinha ainda ido estudar na famosa London School of Economics, que alguns dizem que é a melhor escola do mundo, por ensinar a economia liberal. Paulo Francis foi outro que, conduzido pelo Delfim, foi acabar com a própria cabeça lá na London School of Economics. E todo esse pessoal frequentava a casa do Leandro. E uma vez o Ferreira Gullar levou uma mensagem do Departamento Cultural do Partidão com um convite para que eu me tornasse um companheiro deles. Isso nos anos 1970. O Ferreira Gullar me conhecia menos, mas o Leandro e o Nelson começaram a rir: “Ih, esse aí é sartreano, existencialista, imagina… Não vai entrar pro Partido de jeito nenhum”.

Eu me lembro de um texto horripilante do Carlos Nelson Coutinho, destruindo a Tropicália, a contracultura. Não tinha um embate ideológico grande ali?

Comigo não tinha. O Carlos Nelson até fez uma resenha de um livro meu para uma revista. E mesmo nela ele foi todo cheio de tato comigo. Claro que contestou tudo que estava no livro, mas cheio de tato, sem raiva nem nada. Agora, com os tropicalistas já era mais complicado. Eu tomava cerveja com ele, passava a noite, batíamos papo… Até o Sartre eles começaram a engolir, mas de forma meio outsider. Em minha homenagem, eles engoliam um pouco mais o Sartre (risos)…
O Hakim Bey, o anarquista ontológico, criador da ideia de Zonas Autônomas Temporárias, era um defensor assíduo do levante. Ele dizia que quando o levante dá certo, se consolida, ele deu errado.
Perfeito, é a diferença do grupo em fusão para o grupo organizado. Porque aí deu certo, foi vitorioso, organizou. Organizou, matou. E a contracultura nunca teve isso.

E os teóricos da contracultura, o Marcuse, o Norman Brown?

Eles eram professores universitários, acadêmicos. Nenhum deles organizou nada, politicamente. O Sartre tinha muito mais envolvimento político que qualquer um desses pensadores. Norman Brown nunca botou o nariz para fora da universidade. Então na história da contracultura, os hippies e tal, nunca tiveram essas lideranças. Tinham esses pensadores, que eram mais admirados. Timothy Leary foi entronizado como guru da contracultura, para usar um termo esquisito que inventaram aqui no Brasil para mim também. Mas nem ele tinha um papel centralizado de liderança. Ele que vivia dizendo que essa geração era santa, “eles é que sabem tudo”.

Você gosta das ideias dele?

Eu acho o Timothy Leary engraçadíssimo, meio um clown da contracultura. Agora, o que ele diz do ácido é tudo verdade. Pega o que o pai do ácido, doutor Albert Hoffman, diz e está tudo lá. O doutor Alberto Hoffman morreu com 102 anos, tomando ácido ainda. Ele descobriu o ácido com 30 e poucos, então quer dizer: tomou ácido por mais de 70 anos. Deve ter sido uma viagem muito boa, deve ter esclarecido muito sobre o que aquela droga fazia. Ele escreveu um livro chamado “My problem child”. Porque além do ácido, ele é criador de um número enorme de remédios contemporâneos. Ele era pesquisador da Sandoz, de Zurique, e depois do LSD ele foi nomeado Diretor de Pesquisa da Sandoz, e esteve ligado a tudo que a Sandoz criou por uns 40 anos ainda, até se aposentar, quando ele foi pro seu chalé na Floresta Negra, e ficava lá descansando, tomando ácido e viajando pelo menos uma vez por semana. Saía pra passear na floresta. Até os 100 anos ele estava ótimo. Tem um vídeo dos seus alunos e discípulos comemorando os seus 100 anos de idade. Já o Timothy Leary morreu bem mais cedo, com 75 anos, sempre piradaço. Era um aventureiro, tinha esse temperamento aventureiro. Teve uma fase que ele ficou sem dinheiro, porque ele não tinha mais emprego na academia, aí foi parar na Europa. Então ele ganhou dinheiro “viajando” nobres europeus para estabelecer suas vidas passadas (risos). Ganhava uma nota com isso. “Ah, você foi rei, você foi isso, você foi aquilo…”

E os Beats?

Eu não li muitos beats. Eu li alguns poetas da City Lights, lá de São Francisco, na época, porque era a maior moda. Ferlinghetti, Kerouac, naturalmente, Ginsberg, os mais na moda. Neal Cassady… E sempre gostei da impressão do Norman Mailler dizendo que o hippie era o existencialista americano. São mais simpáticos que os franceses, que eram muito soturnos, aquela coisa deprê, naqueles bares de porão, ouvindo jazz, aquela semi-obscuridade, bebendo… Os hippies iam pra natureza, andavam pelados, se jogavam dentro do rio, tomavam banho de cachoeira…

E uma questão importante da época, que é a questão do feminismo, das mulheres. Como você acompanhou isso?

Eu casei cedo, com uma mulher bem comportadinha, bem burguesinha, filha duma família tradicional bahiana. Tinha até brasão! E eu, um filho de baixa classe média de Porto Alegre. Foi um casamento provocado um pouco pelas circunstâncias, porque eu estava namorando a moça quando ganhei uma bolsa de estudos para ir para os Estados Unidos, da Fundação Rockfeller, e disse pra ela: “Olha, eu ganhei essa bolsa para os Estados Unidos e não vou desperdiçar não, eu vou”. Aí ela disse: “Eu quero ir com você”. “Tudo bem”. “Mas tem uma coisa: meus pais só deixam se eu for casada”. Aí me casei. Minha filha mais velha nasceu nos Estados Unidos, é norte-americana, e o outro, o segundo é baiano. São os dois únicos filhos que tenho e adoro. Meu filho não me deu netos, mas ela me deu uma menina que agora é médica psiquiatra e psicanalista… Me deu quatro netos maravilhosos, garotos ótimos. E fiquei com a minha mulher até que o casamento não se sustentou mais. Nós viemos aqui para o Rio, eu virei boêmio, ela ficava em casa com as crianças, eu ia para a rua de noite, ia para os botequins, aí se tornou uma coisa insustentável. Minha segunda mulher já era companheira de boemia, era uma estrela de televisão.

Já é desse período que você começou a fazer coluna Underground no Pasquim, a lidar com a contracultura. E foi também o auge do movimento feminista. Como você se relacionou com isso?

Eu nunca me meti muito a falar nesse assunto por achar que esse era um assunto das mulheres. Era um assunto delas. No grupo de pessoas com quem eu andava na época, meio hippies, meio malucos, homem e mulher era tudo a mesma coisa, não havia discriminação nenhuma, era o reino da liberdade. E vários problemas que idealmente não deveriam aparecer no meio das relações pessoais apareceram, e o pior dentre eles foi o ciúme. Porque esse negócio de troca-troca, de amor livre, cria-se um ciúme infernal. Muitas comunidades alternativas foram vítimas disso, porque não encontraram uma fórmula para que isso fosse resolvido. Uma forma de não colocar o seu pensamento à frente do outro, como Sartre e Simone de Beauvoir, que eram completamente livres pra fazer o que bem entendessem — e nunca brigaram! Foram até o fim da vida, velhinhos. Sartre cego, a Simone cuidando do Sartre, lendo livros pra ele, Sartre tocando piano pra Simone… Sartre era bom pianista, tinha aprendido menino… Mas eles tiveram os dois casos de amor incríveis, a Simone teve aquele caso com Nelson Agri, o escritor americano, que foi muito bem, eram apaixonadíssimos, dizem que trepavam maravilhosamente bem, mas encrencou quando o Nelson Agri chegou e disse assim: “Olha, tá tudo bem, tudo bonito, mas eu quero você para ser minha mulher, então você tem que parar com essa história de Sartre”. Ai a Simone disse não. Ao mesmo tempo o Sartre tava tendo um caso com uma americana, por acaso, uma mulher riquíssima, que também deu-lhe uma prensada para parar com essa história de Simone, e o Sartre recusou. Isso porque eram acordos que eles combinaram. Sartre disse que os dois poderiam ter quantos amores contingentes quisessem, porque o amor entre ele e Simone era essencial. E no círculo de amizades dos dois, a liberdade sexual era muito grande. Imagino que ainda maior na França do que nos Estados Unidos. E havia muitos problemas de ciúme, também: quem era dono de quem? Alguns hippies conseguiram o que só os índios tiveram: porque índio tem liberdade sexual. Em alguns índios do Xingu, as crianças tem uma mãe e todos os homens da tribo são pai. Todos os homens da tribo tem responsabilidade de pai sobre todas as crianças, que tem uma mãe particular que é só dela, mas pai tem todos. Os hippies se encaminhavam para uma coisa assim, porque os hippies buscavam uma forma de vida tribal próxima ao que alguns povos indígenas haviam conseguido. Mas havia realmente um grau de liberdade muito grande nos hippies, eles nunca cederam a nenhuma tentação de localização, burocrática, repressiva, impositiva, castradora, nunca teve. Se acabaram porque se esfacelaram mesmo ante o assédio da sociedade de consumo, a força opressiva, a caretice.

E as comunidades hippies que sobreviveram acabaram se afastando mais e mais da sociedade, indo para mais longe. No Brasil você tem comunidades no sertão, na Amazônia, em lugares menos acessíveis.

Totalmente distante da civilização branca, para poder ter aquela maneira de viver…

Você morou em comunidades?

Não, não. Visitei, frequentei, escrevia sobre, mas nunca cheguei a morar numa comunidade… Conhecia algumas. Agora, ultimamente, eu tenho essa descoberta teórica de que a liberdade hippie atende muito às funções que Heidegger coloca para superar o esquecimento do ser. Só que o modelo do Heidegger são os camponeses alemães, que estariam mais perto do Ser do que os homens urbanos. Que é aquela velha história romântica do contato com a natureza, dia, noite, sol, lua, inverno, verão, animais, rios, lagos… Isso tudo, segundo Heidegger, aproxima você do Ser. E as coisas como essa câmera aqui são maquinações humanas, manipulações. São um certo tipo de magia. É uma magia, tem as suas regras. Porque nas sociedades primitivas, a magia sempre tem que ter uma liturgia muito definida e que não pode ser desrespeitada. Senão, não funciona. Que nem essa câmera, ou é tudo respeitado, a liturgia disso aí, ou ela não funciona. Toda magia é feita assim. A magia tecnológica só é mais elaborada, mais complexa. O que corresponde à mente analítica ocidental. Mas, ao mesmo tempo, ela distancia do contato direto com o Ser – ou “o abismo do Ser”, como diz o Heidegger – ou seja, o mistério. Porque se você tirar toda a feitiçaria, o que resta é o mistério. O que é que há nisso tudo? Não há nada. Qual o sentido de tudo que eu vejo? Isso tudo é um mistério. O que é que você tá fazendo aqui? Não sabe de onde vem, para onde vai, o que acontece depois, se é que acontece. É um mistério, é o ser. Agora, os filósofos vão dizer que só na proximidade do Ser é que você se humaniza, e o distanciamento, ou o envolvimento cada vez maior com as maquinações, o robotiza. Tem coisas do Heidegger sobre vida inautêntica, sobre maquinação, muito parecida com a alienação de Marx de 1844, século retrasado. Só que essas maquinações que Marx já percebia só se desenvolveram cada vez mais. E sem controle. Porque a economia liberal propicia o descontrole. E uma economia estatal tem que conviver com a economia liberal, e portanto se adaptar a ela. Pergunta para os chineses, ou para os cubanos. Den Xiao Ping salvou a China sacando isso. Um governo, dois sistemas. Meu colega roteirista conta uma piada célebre entre eles lá: tem uma encruzilhada, e dois caminhos. Um dizia “capitalismo” e o outro dizia “socialismo”. Aí chega um americano e nem pensa, vai pelo caminho do “capitalismo”, e se dá bem. Aí vai o soviético, seguindo a doutrina, e vai pelo “socialismo”. Aí o chinês chega, pensa, pensa, e chega a uma conclusão: mudar as placas de lugar. E vai pelo “socialismo” mesmo. Porque o sistema chinês é isso, fazer um sistema capitalista, mantendo o controle político ditatorial estatal.

Como dizem, é o pior dos dois mundos… E a questão do marxismo e da ecologia?

Marx não tinha consciência dos limites naturais, da conservação, do ambiente. Naquela época não era fácil de se ter, ainda era um pensamento que estava surgindo. E ele era muito urbano, e você tem que ter certo conhecimento da natureza pra despertar sua consciência ecológica. Senão você fica muito domado, acha que uma câmara de filmar, por exemplo, é natural, que é tão natural quanto uma árvore, ou quanto o sol.

Como foi que o pensamento ecológico chegou até você? Foi impactante pra você travar contato com esse pensamento?

Foi numa fase assim de hippie meio radical. Eu morei numa praia durante dois anos. A minha segunda mulher, que era starlet de televisão, mas era chegada, gostava de ser hippie, gostava de magias, foi comigo. Eu convivi com ela dois anos numa cabana, numa praia em Macaé. A gente raramente ia à cidade de Macaé, ficava lá no mato. Eu catava lenha, porque o fogão era a lenha, a água era de poço.

Isso em meados da década de 1970, depois da Rolling Stone?

Não me lembro.

E você vivia do que lá?

O André Midani tinha um grupo de debates, em que havia intelectuais, artistas, gente selecionada. Tinha uma porção de gente, artistas que ele lançava na gravadora, amigos. E eu ia às reuniões, pegava um ônibus e ia, e ganhava uma grana por mês que segurava as contas. Já passava em Macaé, fazia uma compra no supermercado básica, levava pra cabana. E havia, obviamente, uma vendinha perto, para qualquer coisa que faltasse.

Foi um período feliz?

É, foi um período… interessante. A gente tinha ácido, e de vez em quando mandava um para dentro. E teve uma história que eu já contei no meu livro, que foi o seguinte: as galinhas que a gente cuidava botavam ovos. Alguns ovos a gente comia, outros eram chocados, e teve um ninho que nenhuma galinha se aproximou dele. Aí eu mexi no ninho e tinha uma cobra, enrolada, dormindo. Aí eu voltei, contei pra minha mulher, que me perguntou se eu ia matar a cobra, e eu disse que não matava bicho se não fosse pra comer. Aí eu fiz uma tocha, com panos e tal, uma vara comprida, querosene, e coloquei no ninho da cobra, que se assustou e foi saindo, e eu fui assustando a cobra até fora do meu terreno. Chegando no limite do meu terreno eu disse pra ela: “Vai embora, sua filha da puta, que se você voltar aqui eu te mato”! Aí à noite, passei lá no botequim pra tomar uma cachacinha com meus amigos roceiros, e contei a história da cobra, e eles riram de mim porque não matei a cobra: “Achou a cobra boazinha? Por que não botou dentro de casa?” Lá em casa a gente resolvia isso com um três oitão em dois tempos…”

Uma das grandes questões da ecologia é essa, algumas vezes é difícil convencer quem vive no mato de que não se pode matar uma cobra, uma onça. Eles sempre viveram assim e demoram para entender a questão do desmatamento, da escassez, do perigo de extinção.

Aquela seita budista que andava pelas estradas olhando para o chão, para que, se tivesse uma formiga, eles desviassem e não matassem. Não podiam tirar a vida de nenhum ser vivo, nem de uma formiga. Mas na roça não é assim, na roça… Cobra, mata logo…

E a volta para a cidade, como é que foi?

Minha propensão a doenças no pulmão apareceu, e eu tive uma tuberculose. Minha mulher chamou uma curandeira, me benzeu, não adiantou nada… Aí infelizmente eu tive que ir pra cidade pra curar essa doença. Aí eu vim pra cá e me deram Hydrazida e pronto. Me lembro de um primo que morreu de tuberculose quando ainda não tinha Hydrazida e tuberculose matava. Morreu com 24 anos. Mas depois que descobriram a Hydrazida, nunca mais ninguém morreu de tuberculose. Só se quiser.
Ao mesmo tempo eu conheci um japonês que era professor de judô, mas que fazia shiatshu, e me tratou com shiatsu, essa massagem japonesa em que ele aperta com os dedos polegares os pontos certos, e dá uma sensação de queimação, e depois disso, fiquei ótimo. Quando eu saí da tuberculose, fiquei com uma saúde que eu nunca tinha tido na minha vida nem nunca mais terei de novo. Fiquei ótimo.

Foi nessa volta que você começou a trabalhar no Globo Repórter?

Sim. Aí que eu procurei emprego. Tinha passado minha fase hippie radical. E consegui com o Paulo Gil Soares, saudoso, que era um jornalista da Bahia, entrar no Globo Repórter. Foi ele quem me apresentou, ou melhor, indicou ao Glauber Rocha.

E como era o clima do Globo Repórter?

O Globo Repórter na época era dirigido pelo Paulo Gil Soares, e tinha na equipe o Eduardo Coutinho, Walter Lima Jr., Othon Novaes. Uma grande equipe, e esses eram os principais.

Você trabalhava de roteirista?

Eu era roteirista e acompanhava a edição. Fazia muito trabalho de pesquisa de assuntos estrangeiros. Eu e o Washington Novaes. Era mais trabalho de jornalista, enquanto o Walter Lima, o Gil e Coutinho faziam mais trabalho de documentarista. Tudo muito relax, tudo montado em moviola ainda. Eu peguei essa época de moviola, não era edição eletrônica ainda. Quando ficava pronto é que fazíamos uma cópia em VT pra exibir. Aí, o Sergio Chapelin gravava as cabeças, as entradas do programa, já em VT…

Tinha liberdade de linguagem?

Tinha liberdade, cada um fazia do seu jeito. Por exemplo, o Coutinho e o Walter Lima tinham que fazer primeiro um roteiro de filmagem, o que é que eles iriam filmar. Iam sair para entrevistar quem, sobre o quê? A produção aprovava e alugava viatura, equipamentos. Nós não. Conosco, era pesquisa interna. As imagens eram colhidas ali dentro do CEDOC, o Departamento de Pesquisa. Aí, o Washington, ele primeiro escrevia o texto, fazia um texto jornalístico, e depois ele cobria com imagens. Eu pegava as imagens, armava as imagens, e depois escrevia um texto para aquelas imagens. Não importava o método, desde que ficasse pronto e levasse lá pro Paulo Gil aprovar, podia fazer do jeito que você quisesse.

E quais programas que você considerou mais interessantes?

Ah, eu fiz um que foi sobre a Marilyn Monroe, eu coletei todo o material sobre ela. Teve um sobre a influência da cultura japonesa no Rio, restaurantes, artes marciais. Esse eu achei legal ter feito. Fiz tantos outros que eu não me lembro. Fiquei trabalhando no Globo Repórter até que o Paulo Gil saiu, e daí eu saí também. Fui trabalhar com o Augusto Cesar Vanucci, depois fui trabalhar com o Daniel Filho, depois fui com o Mario Lucio Vaz. Fiquei mais de vinte anos assim. Era um trabalho interessante, e também nunca mais tive problema de dinheiro. Até que me mandaram embora e me deram uma love letter, que é quando mandam embora e dão uma grana. Me deram uma love letter de 27 mil dólares. E eu disse para a minha mulher, que já era a terceira, a minha mulher até hoje, “vamos pra Nova York”? Ela tinha uma amiga que morava lá. Chegamos em Nova York, dois dias depois o Fernando Henrique Cardoso lança aquele projeto equiparando o dólar ao dinheiro brasileiro. Nós ficamos riquíssimos. Fomos nos melhores restaurantes, passeamos, aproveitamos.

E foi depois da volta de Nova York que você começou a trabalhar como roteirista freelancer?

É, aí eu fiquei um tempo assim, flanando, freelancer, até que o Thiago Santiago me levou pra Record. Aí eu fiquei uns 10 anos na Record. Foram 25 anos na Globo mais 10 anos na Record. São 35 anos de televisão, metade da minha vida. Um grande aprendizado, que está lá no meu livro sobre roteiros, “O poder do climax”.

Fala um pouco sobre esse livro sobre roteiro.

O meu conhecimento de roteiro veio a partir do curso que eu fiz nos Estados Unidos. Eu sou um roteirista americano. Eu trabalho como americano, foi como eu aprendi a trabalhar. Por isso que no Globo Repórter eu juntava primeiro as imagens e estruturava o filme, e aí fazia o texto que elas pediam, ao contrário do que o Washington fazia. Porque eu não era da área de cinema, nem nada. O Washington fazia um texto jornalístico e cobria de imagens, como ele continuou fazendo depois. O documentário dele sobre o Xingu é todo assim. Foi lá, filmou, filmou, filmou, depois sentou no computador, fez o texto, pegou as imagens e cobriu. E eu continuei fazendo do meu jeito. Quando eu fui fazer o documentário que a Lucélia tinha feito na China, foi assim. A Lucélia viajou pra China e levou um cameraman. Aí a Lucélia apontava e falava: “Filma isso, filma aquilo”. Não tinha roteiro. Foi filmando e filmando, aí chegou aqui e levou para o montador, que falou que não podia montar sem roteiro. Aí a Lucélia me chamou. Aí eu falei para o montador: “Elimina todas as imagens que não prestam e fica só com as imagens boas. Eu só quero ver as imagens boas”. E eu fiz os quatro documentários para a televisão com as imagens boas. É assim que aprendi a trabalhar, em cima muito do método americano. E acabei criando uma grande experiência de roteirista. As duas profissões que exerci na vida foram jornalismo e roteiro. E vivi mais tempo como roteirista do que como jornalista. Então eu aproveitei essa experiência para criar um manual de roteiro. Até hoje dou cursos de roteiro e faço supervisão de alguns projetos. É uma forma de ganhar um dinheirinho e continuar ativo.

Aliás, atividade é que não faltou na sua vida. De todas as formas, não é?

Uma vez eu ouvi de um amigo que eu sou um polímato. Polímato, se você procurar a definição no dicionário, é uma pessoa que detém conhecimentos em áreas diferentes, algumas vezes completamente distintas. Alguns polímatos se transformam no Leonardo Da Vinci, fazendo tudo com perfeição. Outros se transformam em mim, fazendo o que é possívle, de uma forma ou de outra se aventurando na vida.

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Entrevista com Campos de Carvalho

Campos de Carvalho escreveu, entre 1956 e 1964, quatro livros maravilhosos. Já havia escrito antes, mas, por escolha própria, isso só vale como dado bibliográfico (ele mesmo pediu a omissão do livro Tribo, de 1954, da edição de sua obra reunida). O fato é que A lua vem da Ásia, Vaca de nariz sutil, A chuva imóvel e O púcaro búlgaro constituem um dos quartetos mais fantásticos da literatura brasileira. Mas mesmo com a reedição de sua obra reunida, seus livros continuam para poucos, muito menos do que mereciam. Poucos mas apaixonados. Assim como o seu amigo Antonio Fraga, autor do igualmente espantoso Desabrigo, forma-se quase uma confraria em torno de seus livros.
Essa entrevista foi realizada em 1997, no seu apartamento em Higienópolis, num apartamento antigo e comportado, mobiliado com móveis estilo anos 1950 e com as paredes ostentado as pinturas de Lígia, sua mulher. Nada que desse uma dica de que ali morava um escritor surrealista. O que já era, de fato, algo um pouco surreal. Durante a entrevista, respondia após longos e constrangedores silêncios, olhos perdidos, e quando já achávamos que tinha esquecido a pergunta, soltava uma resposta precisa, como se fosse doloroso encontrar as palavras. Era esse o Campos de Carvalho que encontramos, o homem que disse numa entrevista recente que “sorrir dói”, não o “louco que aprendeu a rir da própria loucura”, como o personagem de Tribo. No começo da entrevista, soltava respostas que pouco remetiam a nossas perguntas, e que na sua maioria já havíamos lido em entrevistas anteriores. Quando pedimos que respondesse o que estávamos perguntando, disse constrangido que, como estava com problemas de fala, elaborava as respostas antes e as decorava, acrescentando que afinal todos perguntam as mesmas coisas mesmo. Então se tornou mais espontâneo. Mas só fomos nos dar conta das pérolas mais tarde, em casa, pois no mesmo tom com que dizia as coisas mais prosaicas, como preferir sorvete de creme, contava-nos que tinha ido para a Argentina e não se convencera. Ela não existia. Certa altura, percebendo nosso desconforto, mais fruto de encarar uma figura para nós já mítica do que do andamento da entrevista, perguntou-nos se estava nos decepcionando. Não, Campos de Carvalho, certamente não estava.
(Sergio Cohn)

Prata – Hoje, com todos os avanços científicos e tecnológicos, já é possível assegurar a existência da Bulgária?

Mais ou menos, não existe nada comprovado. As preocupações da ciência são outras, pensa-se em ir a Marte, que, aliás, não existe.

Prata – Algum outro lugar não existe?

A Argentina. Eu estive lá há dois anos, mas não me convenci não. Fui a Mar Del Plata com a Lígia, minha mulher, para um cassino. Eu adoro cassinos, mas voltei desiludido. O cassino existia, deixei todo o meu dinheiro lá…

Sergio – E o Brasil?

Em termos. No começo do mês, quando recebo o meu ordenado e pago os impostos, me convenço de que ele existe. Depois me esqueço dele. Não sei se sou brasileiro.

Prata – E o Espírito Santo?

Não existe.

Prata – Fale-me sobre a revelação que você teve na rua Lauro Borges, depois de uma missa.

Ah, sim, sobre o diabo, não? Aquilo foi quando eu perdi a religião, a abandonei por completo.

Sergio – Por quê?

Não sei explicar. A idéia de Deus me soa completamente absurda. Mais fácil eu existir do que Deus.

Prata – A tua mulher acredita em Deus?

Acredita, embora eu seja muito convicto e tente convencê-la do contrário. Mas eu não tenho muita influência. Outro dia, ela começou a reler O púcaro búlgaro para saber por que era tão falado. Parou no meio, o que quer dizer que não gostou muito. Ela conheceu um rapaz de Uberaba, o Campos de Carvalho dela, e eu me tornei um escritor surrealista, o que é muito difícil para ela.

Sergio – Você ainda acha que O púcaro búlgaro é o seu melhor livro?

Eu acho O púcaro búlgaro o meu livro mais importante. Eu escrevi ele em 24 dias, que é muito pouco tempo, eu acho. O editor me encomendou, eu comecei a escrever. Eu sempre começo muito incerto, nunca sei onde o livro vai dar.

Prata – Como você começa a escrever seus livros? Por um personagem, um parágrafo, um tema?

Todos os meus livros surgiram assim de repente. Você não gostou do Púcaro?

Prata – Adorei. Mas prefiro o A lua vem da Ásia.

Sergio – Eu também. Ele também foi escrito em pouco tempo, como o Púcaro?

Não. Escrevi em um ano, mais ou menos. Eu tinha 40 anos, e estava andando em Copacabana, quando passei em frente ao hotel… hospital… Cemitério São João Baptista, que fica ali na rua Real Grandeza. E então me lembrei que a lua vinha da Ásia. Não sei porque, mas vem. Fiquei com aquele pensamento. E então comecei a escrever um livro. Saiu no mesmo ano que o livro do Mário Palmério, Vila dos confins, que eu adoro. Ele era muito inteligente. Nós fomos companheiros de quarto, na faculdade.

Prata – Então A Lua Vem da Ásia surgiu a partir do título?

Sim. Eu escrevi primeiro o título. A vaca de nariz sutil também.

Sergio – Você escreveu um livro de poemas, também. Algum deles chegou a ser publicado?

Não. Eu mostrava aos poetas. Aqui em São Paulo eu procurei o Mennotti Del Pichia, depois o Guilherme de Almeida. Eram poetas da época, modernistas.

Sergio – Você foi influenciado pelo Modernismo?

Não. O Mário de Andrade eu conheci pessoalmente, na sua casa na Lopes Chaves. E me comparavam muito com o Oswald. Mas eu não me influenciei por eles. O Murilo Mendes eu gosto imensamente, um dos grandes poetas nossos. Ele tinha um humor muito sutil.

Sergio – Você não gostaria nunca de reeditar o Tribo?

Não. É um livro de juventude, que só poderia ser escrito naquela época. Ele tem muita coisa que foi retrabalhada no A vaca de nariz sutil e no A chuva imóvel. Mas eu não me reconheço mais nele.

Prata – Por que você prefere O púcaro búlgaro?

Pelo humor. Eu sempre tive muita facilidade com o humor. Mesmo antes de escrever. Eu sempre li e apreciei muito os humoristas. Comecei a escrever muito tarde, 40 anos. Antes eu lia demais, principalmente a literatura francesa. Mas depois deixei de ler para escrever, para evitar qualquer influência. Mas não consegui. O surrealismo é uma influência minha muito grande, e eram os surrealistas que eu lia com preferência.

Sergio – Você gosta do humor do Benjamim Perét?

Era dos que eu lia menos. Quando ele esteve por aqui, eu o conheci na casa do Aníbal Machado.

Sergio – Os surrealistas valorizavam muito o humor. André Breton chegou a editar a Antologia do humor negro. Você acha que o humor é uma forma de arte?

Principalmente. E eu me sinto à vontade no humor. Tanto que estou escrevendo um novo livro atualmente, como se chama mesmo? Eu ando esquecendo até os nomes dos meus livros…

Prata – É aquele Maquinarias sem máquinas, especulações sem espelhos?

Não, é o Mosaico sem Moisés. Eu estou escrevendo no tipo de humor do Púcaro. O humor de O púcaro búlgaro saiu muito à vontade, sabe? Para mim mesmo foi uma revelação.

Sergio – Foi um livro gostoso de escrever?

Muito, muito. Eu ria escrevendo.

Prata – Eu trouxe aqui um livro de um bulgarólogo importante, que diz que esteve na Bulgária e governou ela por muito tempo…

Mentiroso. Todo livro que eu leio sobre a Bulgária chego à conclusão que é falso. Quando fui fazer a noite de autógrafos no Rio, o cônsul búlgaro me procurou, e eu expliquei para ele que não conhecia a Bulgária (mesmo porque ninguém conhece), mas que o livro não era nenhuma ofensa. Acho que fui muito injusto com a Bulgária.

Prata – Você já consumiu drogas?

Não. Mesmo porque isso não existia quando eu era moço. É coisa da modernidade. Mas eu bebia muito, cheguei a ser alcoólatra. Você vê que o meu jeito de falar é ruim, né? A pior coisa do mundo é envelhecer. Você perde todas as ilusões. E eu sou muito pessimista. O humor é matéria desse pessimismo.

Sergio – Você sempre foi pessimista?

Sempre.

Prata – Então escrever humor era como uma válvula de escape?

Sim, é isso.

Sérgio – E você era muito metódico para escrever?

Não. Eu nunca sei o que vai sair quando começa um livro, escrevo corrente. Se me perguntarem o que vai ser o Mosaico sem Moíses, não saberia responder. Eu nunca sei onde o livro vai me levar.

Prata – Você escreve todo dia ou só quando vem uma inspiração?

De noite, de preferência.

Prata – Você acredita em inspiração?

Sim.

Sergio – E você reescreve muito?

Não, eu nunca mexi em meus livros. Eu escrevia primeiro a lápis, depois passava caneta e datilografava, mas não mexia em nada. Tem uma frase no A Lua Vem da Ásia que o Jorge Amado pediu para tirar na reedição do livro, que segundo ele não tinha nada a ver. Eu não tirei.

Sergio – Você conhecia o Jorge Amado antes de lançar os seus livros?

Não. Eu fui na Livraria São José, onde sabia que ele sempre estava. Então encontrei ele e me apresentei como o autor de A lua vem da Ásia. Ele me disse: “não diga, já comprei mais de trinta livros para dar para os amigos”. E ficamos amigos, eu almoçava na casa dele. O Jorge Amado que eu conheci é o dos primeiros livros, que eu achava muito melhores.

Prata – E qual era o seu trabalho na época?

No Rio, eu era chefe de quatro advogados. Era muito fácil. Entrava à uma e saía às duas. Morando no Rio não havia sentido em ficar preso num gabinete. Eu trabalhava num departamento, no setor jurídico.

Sergio – É melhor escrever ou ser lido?
Escrever. Você liberta muita coisa sua. E eu nunca vi alguém comprar o meu livro. No Rio, quando lancei os livros, eu ia para as livrarias e ficava esperando, vendo se alguém comprava algum exemplar. Nunca vi ninguém comprar.

Sergio – A chuva imóvel é o livro mais sério que você escreveu, não?

É. Trágico. E a parte final eu levei muito tempo para escrever. Não consegui terminar o livro. Então decidi terminar da minha maneira, nomeei o capítulo “Zona de sombra” e comecei a escrever, ao correr da pena.

Prata – Quando se lêem os seus livros, eles soam muito claros, muito bem construídos. Como você consegue construir tão bem um livro sem reescreve-lo?

Eu nunca reescrevi nada. O estilo penso que é da natureza. Eu não sabia que era escritor e era.

Sergio – Os seus livros possuem uma linguagem que poderia ser considerada pesada na época que foram publicados. Isso não causou nenhum problema?

(Lendo) “O filho da puta e a puta que o pariu desapareceram com o dinheiro do MSTB… Merda! E esta hora devem estar se rindo a minha custa, rindo e fodendo, o que é pior…” Há trinta anos atrás era difícil escrever assim, “fodendo”. As pessoas procuravam outra palavra. “Só hoje, passaram-se trinta e seis horas que eu dei com o bilhete de Rosa no pinico… A merda do bilhete, com a sua caligrafia de puta e analfabeta… Me desculpa; vou com o Expedito. Ainda usou pouco ponto e vírgula, a cadela!”. É, não sei como me safei…

Prata – Você ia muito ao cinema?
Muito. No Rio eu ia sempre. Mas eram filmes da época, meio antigos…

Sergio – Que diretores você gostava?

Gostava muito do Fellini, tem muito humor. O Bergman eu acho fantástico, gostei de todos os filmes dele. Pena que não sai mais nada.

Prata – Você assistia os filmes brasileiros da época? Glauber Rocha, por exemplo?

Glauber Rocha eu fiquei conhecendo porque ele escreveu um artigo violentíssimo numa revista, na época que saiu o Púcaro. E eu gostava muito dele como diretor. Fiquei chocado. Ele era fã de livros regionalistas, e me chamava de alienado.

Prata – Você gosta do Nelson Rodrigues?

Muito. Ele é maravilhoso, tinha um humor fantástico. E eu sempre disse que ele ia se tornar o que é hoje, mas as pessoas não acreditavam.

Sergio – O que te dá prazer atualmente?

Eu fiquei trinta anos sem escrever, e às vezes me pergunto o porquê disso. Escrever é o que me alimenta agora. Eu levei muito tempo para me reconhecer capaz de escrever novamente. Mas isso O púcaro búlgaro dá a entender, né? O Jorge Amado, quando o Púcaro saiu, também me telefonou e disse que depois dele eu jamais conseguiria escrever outra coisa. Ele errou, porque estou escrevendo novamente.

Prata – Você acha que isso é o perigo de escrever uma obra-prima, o medo de nunca fazer algo tão bom quanto?
Eu nunca tive medo. Confio no meu estilo. Agora, faltou humor. Eu perdi o meu humor. Eu era muito engraçado, fazia rir os colegas, as moças do escritório. O humor é sedutor. E eu escrevo sempre para os jovens. As pessoas lêem meus livros atualmente?

Sergio – Sim.

Isso é bom, porque foi para vocês que eu escrevi. Eu escrevi os meus livros para a juventude. Quando eu lancei meus livros, o Ênio Silveira, que era o meu editor, me disse que eu só seria lido dali a trinta anos. Só que eu não sabia que trinta anos durava tanto…

Prata – Você foi feliz na juventude?

Tristíssimo.

Sergio – Você escreve pensando na liberdade?

Sim. Eu sou um anarquista.

Sergio – A impressão que o A lua vem da Ásia me passa é a de que quanto mais o personagem toma conhecimento do mundo à sua volta, mais livre ele fica.

Sim, isso aconteceu mesmo no livro. E comigo também. Quanto mais eu escrevia, mais livre ficava. Depois de um tempo, eu acabei me sentindo completamente livre. E o conhecimento sempre é bom, né. É necessário conhecer.

Sergio – Você acha o A lua vem da Ásia alegórico?

Não. Eu nunca pensei em mensagem ou alternativa.

Prata – Você acha que a arte traz liberdade?

Para mim trouxe. A arte é a única coisa em que se pode confiar nessa vida. E o sexo. Nos meus livros eu falo muito de sexo. O sexo, depois da arte, é a única coisa válida nesse mundo.

Sergio – Para você o Surrealismo foi uma solução?

Acho que sim. Todos os meus livros foram surrealistas e eu não me forcei a isso.

Prata – Você vê surrealismo no cotidiano?

Hoje menos que antes, não sei por quê.

Prata – A sua escrita possui traços biográficos ou é tudo inventado?

Tudo inventado.

Sergio – Eram as barbas que cresciam em pensamento?

Sim. Mas agora eu não estou usando barbas. Eu não consigo me expressar todo em entrevistas. Quando leio minhas entrevistas no jornal estou sempre me repetindo. Mas na arte não, na arte eu estou inteiro.

Prata – Você acha que existe mais de Campos de Carvalho em seus livros do que aqui?

Eu me vejo mais na arte do que em mim mesmo.

Sergio – Você não morou às margens do rio Sena porque já esteve em Paris?

Pois é. Paris existe. (falando com a mulher) Lígia, se você vai sair, na volta me traz um sorvete.

Prata – Você também prefere sorvetes de frutas?

Não, de chocolate e creme. Eu tenho muito pouco a ver com meus personagens.

Sergio – Você não parece em nada com os seus personagens?

Não pareço com nenhum, sou louco à minha maneira.

Entrevista com Hilda Hilst

Em 1999, fomos, eu, Marina Weis, Fabio Weintraub e Ilana Gorban, para a Casa do Sol, em Campinas, para entrevistar a Hilda Hilst. Ela fez um pedido especial para concender a entrevista: que levássemos duas garrafas de vinho do porto (uma para ela, outra para nós) e um whisky para bebermos durante a entrevista. Chegamos de manhã, e quando a conversa acabou, perto do meio-dia, as garrafas de vinho do porto já estavam vazias. Daí, Hilda pediu que fizéssemos uma leitura dos poemas dela, escolhendo nossos preferidos. Ficamos em círculo em volta dela, lendo um por vez, enquanto ela, sentada no centro, chorava copiosamente.

– Você leu o artigo dedicado a você no último livro do José Castello, Inventário de sombras? Nesse artigo, ele aponta como contraditório o seu desejo de aceitação por parte do público, considerando a sua recusa a qualquer tipo de concessão às formalidades literárias, a qualquer tipo de mistificação, e o fato de você sempre ter se mantido “livre para fracassar”, como dizia Bataille…

… É o potlacht: o “poder da perda”. Não é que eu queira uma aceitação do público. Mas quando vai chegando a velhice, os 70 anos, dá uma pena ver que ninguém lê essa obra que eu acho maravilhosa, que é a minha. Fico besta de ver como as pessoas não a entendem, como ficam sempre insistindo em perguntar por que eu escrevo do jeito que escrevo. Falam coisas absurdas, que a minha obra não tem pontuação, não tem isso, não tem aquilo… Fiz todo tipo de texto possível e parece que ninguém entendeu. E eu me recuso a explicar outra vez. Acho desagradável ter que falar sobre a minha obra, é muito difícil. Eu não sei falar, sei escrever.

– E a proximidade dos bichos? Em Sobre tua grande face, você pede a Deus para não lhe dar cachorros, pois Ele sabe que você ama animais e se sentiria confortada com eles…

Adoro bichos em geral. Menos aqueles de que todo mundo tem medo: aranha, escorpião, barata. Mas eu nunca mato bicho algum. Se for um besourinho, eu coloco no jardim. Mas se for barata eu dou aqueles gritos horrendos e chamo o caseiro para tirar ela de perto. Mas não deixo matar. Os cachorros eu adoro. Se pudesse, teria cavalos e vacas também. Mas nunca para matar. Tenho uma afinidade com bichos desde criança. Não sei por quê. Ontem li uma coisa horrível no Correio Popular: um cachorro faminto comendo outro cachorro. Coisa medonha. Culpa do dono do canil que deixou os animais sem alimento, todos magérrimos. Fiquei desesperada. Mas, como já tenho um monte, não pude fazer nada.

– E quem toma conta de todos esses cachorros?

O caseiro. Essas relações com empregados podem ser desconcertantes. Minha mãe tinha um cachorro grande, uma espécie de boxer, não me lembro ao certo. Um dia ele fez cocô na sala. Fui pedir a um empregado, que se chamava Marciano, para limpar aquilo. “Marciano – vejam só o nome – você limpa pra mim a bosta do cachorro?”, perguntei. Ao que ele respondeu: “Não limpo bosta de cachorro”. Aí fiquei brava e quis imitar minha mãe. Minha mãe era severa demais com os empregados, que curiosamente a adoravam. Falei: “Se eu, que sou uma doutora, limpo, por que você não pode limpar?”. E ele: “É uma questão de gosto, doutora Hilda”. Pegou o guarda-chuva e foi embora… Desatei a rir sem parar por causa da resposta dele, que achei ótima. Minha mãe não viu graça, porque era uma mulher muito ressentida.

– O Alcir Pécora escreveu certa vez que a presença dos bichos e da loucura ao longo da sua obra constitui sinal de uma utopia, a de uma vida fora da lei – bichos e dementes são subtraídos ao pacto civilizatório…

Sim, é verdade. Os loucos se prendem a essa coisa que já contei várias vezes, à figura do meu pai. Que era um homem lindo, deslumbrante, e acabou louco. Gostaria muito que, no futuro, a minha casa fosse transformada numa fundação chamada “Apolônio de Almeida Prado Hilst”. E num centro de estudos psíquicos sobre a ressurreição da carne e a imortalidade da alma. Estou pensando em como fazer tudo isso.

– Os seus textos possuem momentos belíssimos que são mergulhos no inconsciente, na loucura. E o que me impressiona é que são momentos na verdade muito lúcidos, de descobertas…

Toda a minha obra é uma homenagem à loucura. É devido ao meu pai. O fato de ele ter ficado louco me impressionou muito. Mas eu achava lindo ser louco, porque diziam que ele era louco. Então eu sempre tive um deslumbramento muito grande pela loucura. Pode ser que eu seja louca também, tanta gente fala que sou…

– Você tem medo disso?

No começo eu tinha. Muito medo de ficar igual ao meu pai. Minha mãe então inventava mil histórias. Falava que ela havia traído meu pai, que eu não era filha dele… Tudo muito confuso. Ela inventava um cara, um joalheiro que morava em Jaú, de quem eu seria filha. Comecei a ficar obcecada atrás desse joalheiro. Um loiro dos olhos azuis. Até que ela me confessou que era mentira, que ela havia inventado tudo porque temia que eu ficasse pensando demais no meu pai e acabasse enlouquecendo também. Eu tinha tanto amor pela idéia do meu pai… Por causa disso, sempre tive medo de ter filhos. Os médicos sempre dizem que a loucura acontece na segunda geração. O filho de uma pessoa paranóica, esquizofrênica, pode ser normal, mas o neto terá grandes chances de ser louco. Por isso nunca quis ter filhos. Não tenho afinidade com crianças. Elas não me entendem e eu não as entendo. Ficam olhando pra mim, esquisitíssimas. Tenho muito medo de crianças. Um médico me disse que é porque eu também sou criança: criança tem medo de criança… Essas coisas: vem a mãe e pede para o filho: “Olha como a tia é bonita!”. Daí vem o menino e diz: “Eu não acho, ela é feia”. Eu ficava discutindo com a criança: “Por que você me acha feia?” Sempre tive um diálogo desagradável com crianças… (risos)

– Mas construiu uma personagem criança adorável, a Lory Lambi…

É. Eu queria muito fazer um livro para crianças com a história do cu do sapo Liu-Liu. Um sapo que queria tomar sol no cu. As crianças iam adorar. É tão bonita a história, seria divertido. Podia virar um livro grande, com ilustrações coloridas. Do Angeli, por exemplo. Ficaria lindo.
– Há uma passagem no Estar sendo, ter sido em que você descreve uma cena de felação com uma prostituta banguela. Há realmente várias ocorrências desse motivo odontológico na sua obra…

É verdade. Acho que eu tenho pavor dessa coisa de perder os dentes, que eu associo muito à idéia da morte. Por isso estou aflita pra ir ao dentista. Mas são deslumbrantes as vantagens de ser banguela. O chato é que a gente não pode rir nunca. Só que, no meu caso, a perda dos dentes veio um pouco tarde: agora eu não chupo mais o pau de ninguém. Há vinte anos não vejo um pau. Até falei pra Marilene Felinto de um amigo meu que estava tomando banho aqui em casa. Entrei por engano no banheiro e, quando vi o pau dele, comecei a rir sem parar e fui hospitalizada. “Meu Deus, é por causa disso que se briga tanto nesse mundo?”, pensei. Ri tanto que fiquei com falta de ar, porque tenho bronquite asmática. Tiveram que me hospitalizar, de tanto que eu ri…
Essa coisa do sexo fica tão desimportante depois que a gente envelhece. Fica cômico também, não dá mais pra levar a sério. Então, a gente só pode rir com esse negócio de foder. Perde-se também aquilo que o Flaubert chamava de alacridade, isso que a pessoa sente quando está gostando de alguém. Uma alegria que não se pode explicar. Pra mim ficou tudo esquisito agora. Posso achar a pessoa muito bonita, mas não tenho mais atração por nenhum homem. Nem por mulher. Por mulher seria ótimo. Parece que a Simone de Beauvoir ficou lésbica depois de velha. Essa chance eu não tenho. Sempre tive medo da buceta, um medo mortal. É uma coisa tão escura, tão funda, parece que você está entrando numa gruta. A gente nunca sabe o que tem lá dentro. Pode ter uma aranha, um gato morto, ou sei lá o quê. Sempre tive medo da minha buceta, medo pânico. Ela me assusta terrivelmente agora. Nem olho. Fico pensando: “Meu Deus, o que será que vem por aí?…” Tenho medo de colocar o dedo lá dentro. Fico enojada e com medo. Não sei o que pode aparecer. Por isso nunca me masturbei. Como é que homem pode gostar de mulher? Acho uma coisa impressionante.

– Jung fala da vagina dentada…

É a porta da iniciação do herói. Tenho pavor da vagina dentata. No Estar sendo, ter sido também há a história do cara que inventou de ter dentes na bunda.

– O William Burroughs tem uma história parecida…

Ah, é? Ele é louco.

– Queria voltar à sua ideia de transformar a Casa do Sol num centro de estudos psíquicos sobre a imortalidade da alma e a ressurreição da carne. Você se refere à imortalidade da alma pessoal ou à imortalidade de uma parte suprapessoal da alma que se cruza com o espírito divino, criador, algo como a enteléquia aristotélica?

Acho que é a consciência que vai sempre se manter.

– E essa alma é dada? Tem aquele verso famoso do Keats, “Chame o mundo, se te apraz, de o Vale da Criação da Alma”…

Realmente parece que a gente constrói uma alma. Até sobre esse ponto há uma história engraçada. Fui, junto com Mário Schenberg, dar uma aula inaugural na Unicamp. Mário achava que nós, eu e ele, havíamos nascido no Egito. Que eu havia sido uma sacerdotisa amiga dele. É claro que ele não falava dessas coisas na Universidade. Dizia que se eu falasse, ele desmentiria. “Tenho medo de perder o meu emprego”. Mas nessa aula, a que compareceram muitos físicos, por causa do Mário, comecei a falar desses assuntos. A certa altura, um físico meio gargalhante, que estava coçando o saco, metido a besta, perguntou: “Quer dizer então que a senhora acredita mesmo na imortalidade da alma?”. Respondi: “Acredito na imortalidade da minha alma. Mas o senhor, se continuar coçando o saco dessa forma, sequer constituirá uma!”.

– Como era o Mário Schenberg?

Era um homem maravilhoso, capaz de explicar pra gente as teorias de Einstein com uma simplicidade impressionante. Não tinha nenhum orgulho, era muito humilde, muito simpático. Foi um grande amigo, cuja perda me deixou muito triste. E tinha uma intimidade muito grande com a arte. Tem até um texto que eu escrevi para ele numa revista…

– E aquela figueira linda lá fora?

Essa figueira acho que tem uns trezentos anos. Ela atende pedidos. Hoje, aliás, é um bom dia, por causa da lua cheia. Tudo o que eu pedi pra essa figueira deu certo. O que os meus amigos pediram também aconteceu. Por exemplo, o Caio Fernando Abreu pediu que a voz dele engrossasse. Ele tinha uma voz muito fina, quase não falava, de medo que os outros rissem. Ele pediu que a voz engrossasse, pediu para ganhar o prêmio Chinaglia e também para ir à Europa. A figueira deu tudo pra ele. No dia seguinte, ele estava com outra voz. Fiquei besta. Ele veio me cumprimentar de manhã e eu não sabia quem é que estava falando. É cada história que acontece aqui nessa casa…

– O que foi que você pediu à figueira?

Pedi, quando era mocinha, pra construir uma casa neste lugar. Queria fazer uma casa perto da de minha mãe, que não queria me dar o terreno. Minha mãe tinha uma hipoteca sobre toda a fazenda. Daí eu tive que pagar, porque a mamãe estava sem dinheiro na época. Houve até um homem, chamado Pedro Romero, que se propôs a pagar a hipoteca em troca da figueira. Propôs na frente dos advogados, todos esperando com a caneta na mão. Eu disse: “Não, essa figueira sou eu mesma. Não posso me vender para o senhor”. Todo mundo ficou boquiaberto. Depois de uma meia hora, ele topou pagar a dívida sem me tomar a figueira.

– A água, a fluidez, são imagens muito freqüente na sua obra. Parece-me que até mais que isso, são também uma dinâmica muito forte da sua escrita…

Não sei nada sobre a minha obra. Só sei que a escrevi. Durante cinqüenta anos pude escrever tudo o que queria escrever. Nunca parei, apesar de dizerem que ninguém lia. Eu mesma não sei explicar o que fiz. Queria ser como Joyce, que sabia falar sobre o seu Ulysses. Todo mundo que escreve de um modo diferente é levado a dar explicações. Mas, para mim, tudo vem do alto. Sou apenas uma intérprete disso. Claro que eu me esforcei muito, trabalhei muito, mas a poesia é um dom divino, inexplicável. A gente fica doente, não, fica doente não, fica excitada, febril. É algo imediato. Depois tudo vem vindo gradativamente, como uma continuação do dom inicial. Como o primeiro verso do Cantares do sem nome e de partida: “Que este amor não me cegue e não me siga”, que apareceu assim, do nada… Vocês não querem se servir de um pouco de vinho do Porto?

– É a sua bebida preferida?

Durante o dia, sim. Às onze horas eu começo a tomar vinho do Porto. Tomo mais ou menos meia garrafa. Há homens, como o Richard Francis Burton, aquele que descobriu a foz do Nilo, traduziu Camões, o Kama Sutra, as Mil e uma noites… que tomava como remédio. Acho que ele tomava umas treze doses, todo dia. Daí me deu também essa vontade. À noite, eu só tomo uísque.

– Você tem interesse pela literatura mística mais hermética?

Tenho interesse pela literatura visionária. Há uma santa sobre quem li muito, Santa Ângela de Foligni. É uma santa que perdeu, em poucos meses, o marido, o filho e a mãe. Depois ela entrou para a Ordem de São Francisco. Li uma coisa dela que me assustou horrivelmente. Ela dizia que teve uma visão de Deus em plena majestade. Era “uma luz tão intensa”, ela escreveu que lá não havia “nem sombra de amor”. Fique gelada quando li.

– … E Santa Margarida Maria Alacoque?
Nossa Senhora! Era aquela que bebia água em que se banhavam os leprosos. Isso me assustava quando eu era criança. As freiras me mandavam ler sobre a vida dessa santa. Eu vomitava sem parar. Outro dia, tive um sonho estranho. Alguém falava comigo: “… e insere a tua oitava maravilha neste espaço: Roxana, lua baça”. Algo assim. A única Roxana de que eu me lembro foi a mulher do Alexandre Magno. Naquele livro do Däniken, Eram os deuses astronautas?, há uma Orjana. Parece que é uma mãe extraterrestre que fecundou setenta humanos. Mas não sei o que querem dizer essas coisas todas. Eu acordei de manhã e ouvi alguém falar “e insere a tua oitava maravilha neste espaço, Roxana, lua baça”. Então eu vi as pirâmides do Egito. Não entendi até hoje. De outra vez, me falaram: “Lembra-te, Apuleia, e se cantássemos juntos a canção?”. Apuleia. Daí eu fui ler tudo sobre o Apuleio. Ele escrevia em muitos estilos. Ouvi três vezes essas vozes estranhíssimas. Mas qual seria a oitava maravilha? Eu conheço as sete maravilhas do mundo. Qual seria a oitava? Deduzi que seria uma coisa secreta, pois a pirâmide tem muitos símbolos secretos. São recados esotéricos demais pra nós.

Entrevista com Eliane Robert Moraes

Já que é dia de Natal, uma entrevista com tema condizente: o Erotismo. Quando pensamos os quatro eixos temáticos da revista especial da Azougue, em 2006-2007, o último foi sobre “invenção/experiência”. Fizemos uma série de entrevistas sobre o corpo, o erotismo, o fantástico. E uma dessas conversas foi com Eliane Robert Moraes, uma das mais instigantes pesquisadoras sobre o tema. Para isso, fomos, eu e o Pedro Cesarino, para a casa dela e de Fernando Paixão, o autor do maravilhoso “25 azulejos”, um dos livros de poesia que marcaram a minha juventude:

– Por que não há uma presença marcante de literatura erótica no Brasil?
Mário de Andrade fala no prefácio de Macunaíma que se dois brasileiros estão juntos, estão falando porcaria, mas que nós não temos um erotismo literário organizado como têm os franceses, os alemães, os ingleses… Então que história é essa que o brasileiro fala porcaria o tempo todo? Eu adoro isso, porque realmente no Brasil o erotismo literário é uma coisa escondida. A melhor metáfora disso é aquela história de achar um poema pornográfico do Manuel Bandeira no meio de um livro do Pedro Nava. É necessária toda uma pesquisa. Mas se a gente pegar os últimos vintes anos, tem muita coisa boa acontecendo por aqui.

– Há todo um crescimento mundial de literatura erótica no mundo. Lolita Pille, Cem escovadas antes de dormir, Catherine M., a própria Bruna Surfistinha. De repente, o erotismo, embora um erotismo light, tomou de assalto as listas de best-sellers…
São duas coisas, talvez uma até puxando a outra. Uma coisa é o erótico comercial. Eu não gosto de dividir entre pornografia e erotismo, para mim tudo é a mesma coisa. Mas são esses livros e autores que você citou, que têm uma demanda de grande público. E que mostram que existe uma tendência internacional interessante de ser pensada, que são os textos confessionais, devassando a intimidade de alguém. Não importa se é inventado ou não, mas aparece dessa forma. E esse confessional acaba sendo muito moralista algumas vezes, e excessivamente preso a um realismo. Eu contraponho isso a uma ficção erótica que é da ordem da fantasia mesmo, do delírio. Sade seria um grande expoente disso, que fala do erotismo de uma forma que é um pouco o impossível. E daí aparece Bataille, Hilda Hilst. No Brasil hoje tem a Verônica Stigger. Ela tem um conto que acho genial, onde chovem caralhos do céu. Então é da ordem da fantasia. É o delírio erótico.

– Você disse que há muita coisa boa acontecendo nos últimos 20 anos. O que é erotismo hoje?
É muito difícil pensar isso. O que é erotismo hoje? É praticado por quem? Não sei. Algumas pessoas têm uma visão catastrófica disso, uma certa nostalgia da revolução sexual da contracultura. Mas eu não concordo inteiramente. Pode ser que o erotismo ainda, para muitas pessoas, seja o que sempre foi. Que tenha uma força vital, transformadora, subversiva até. Quando se diz que o erotismo perdeu a sua carga de subversão, estamos pensando em que erotismo? O do outdoor, do axé? Tem muitas outras coisas acontecendo. Experiência erótica é uma experiência fundante da nossa humanidade.

– O engraçado é que, quando você fala os 20 últimos anos, é um período pós-contracultura. Não são muitos os autores da contracultura que foram marcada-mente eróticos, embora na vida fossem…
Existem dois tipos de autores eróticos. Os que criam algo erótico eventualmente, e os que só pensam naquilo. Se você pega essa geração da contracultura, você vai encontrar textos eróticos em Ana Cristina César, no Armando Freitas Filho, na Ângela Melin. O Rubens Rodrigues Torres Filho é um caso exemplar, ele tem poemas que vão direto ao assunto, que não são velados. Mas tem outras figuras, como o Roberto Piva, o Glauco Mattoso e a Leila Miccolis, que mergulharam realmente no erotismo. O erotismo permeia quase todas as suas obras. Não por acaso, são autores ligados ao homoerotismo.
O problema para quem estuda literatura erótica é definir o que é literatura erótica. Literatura erótica não é o erotismo na literatura, porque erotismo na literatura está em todo lugar. Difícil abrir um livro e não encontrar em nenhum momento erotismo, seja mais velado ou bem pornográfico, ou mais místico, ou burlesco. O José Paulo Paes tem uma expressão interessante sobre isso, naquela antologia que ele organizou de poemas eróticos. Ele diz que vai trabalhar com poemas sexuais explícitos. Que por vezes podem ser alusivos, mas não tanto que não se reconheça o sexo. Eu acho que a literatura erótica é aquela na qual você pode reconhecer realmente. O véu não pode ser muito espesso.

– No belo prefácio para Nadja, do André Breton, você fala que o livro retoma a Paris fantástica de Gerard de Nérval. Que é um fantástico dentro da cidade, já urbano. E, no Brasil, me parece que sempre que pensamos o fantástico, pensamos no meio rural, no interior, no sertão, no Amazonas. Por que essa dificuldade de se trabalhar o fantástico na literatura brasileira?
É muito difícil a gente pensar sobre isso, mas eu acho que existe sim uma obrigação de um certo realismo na literatura brasileira. Talvez pela mesma razão que o negócio do erotismo também fica um pouco acanhado, esse erotismo mais fantástico. Parece que existe sempre uma espécie de superego realista que não deixa essa coisa vir. Isso é um tema muito interessante, porque uma das perguntas que sempre se faz sobre literatura brasileira é porque ela não acompanhou o boom de literatura fantástica da década de 1970. Tirando o J.J. Veiga e o Murilo Rubião, não há praticamente nenhum outro autor que tenha feito fantástico no Brasil nessa época. É como se essa superação do rural no Brasil, a modernização e urbanização do Brasil implicasse em não ter que se mexer mais com essas coisas. Pela mesma razão que temos dificuldade em ir para o folclore, para conversar com certas raízes populares, estabelecer conversas internas. Eu tenho muita vontade de fazer uma pesquisa sobre o erotismo na literatura oral brasileira. Porque é interessante poder pensar o erotismo em si, e não através da formação da literatura brasileira, do que já está consolidado. Justamente para tirar um pouco de lugar.

– O fantástico e o erótico parecem explorar os limites do humano.
Sim, eles vão ara além dos limites, porque o que o fantástico e o erótico fazem é nos lançar para aquilo que o humano não é. Isso é a alteridade de Marquês de Sade. Não tem nada a ver com a violência e a crueldade que está na obra de Sade. Porque aquilo que está na obra de Sade, ou de um Bataille ou de uma Hilda Hilst, é aquilo que não é Sade. Esses autores falam do que o ser humano não é. E o realismo fala do que é. Por isso eu digo, é esticar a fronteira e saltá-la. É explorar uma região que é impossível. Então é inteiramente diferente, é uma perspectiva totalmente outra. E eu concordo que no Brasil nós temos uma grande resistência em relação a isso. Não só com nossos autores. Sade é um autor difícil de ser lido aqui. Temos que empurrar, porque as pessoas resistem muito, têm medo. Porque elas lêem o fantástico como se fosse realismo.
Uma vez eu fui dar uma conferência sobre Sade, e contei aquelas cenas, como quem está lendo um conto de fadas: “Então cada libertino tomou cem garrafas de vinho em um jantar e depois foram para uma orgia com 400 pessoas”. É um conto de fadas adulto. Quando eu terminei, a primeira pergunta que fizeram era se isso era verdade. Eu respondi que não sabia, mas que se eu tomasse cinco garrafas de vinho não conseguiria transar nem com meu próprio marido. Elas levaram ao pé da letra o Sade, o que é inacreditável.

– O Roberto Piva diz que o hedonismo e o erotismo são opostos. Como você pensa isso?
Eu acho que pode existir um erotismo que se aproxime do hedonismo. Quando o Piva fala isso, ele está se alinhando a uma tradição do erotismo que chamamos de erotismo moderno, fundado por Sade. Mas se você volta para os textos mais antigos, para uma erótica mais antiga, você tem um erotismo que é de exaltação dos amantes, do ato erótico. Uma alegria erótica que pode parecer muito inocente para um Sade. É uma coisa que depois se torna impossível, você não tem mais lugar para esse tipo de erotismo.
O Piva é um herdeiro de Sade, de Bataille, de um certa perspectiva erótica que é moderna e contemporânea, que faz parte do mundo moderno. E que tem a ver com a impossibilidade que surge no século xix de se falar daquilo que é o bem. Porque aparece muito fortemente a idéia de mal nessa época. Você vai ver isso em Sade, em Baudelaire, no próprio Flaubert. Essa exaltação do mal é porque é impossível você manter um discurso de tudo aquilo que pode ser figura do bem. Porque é tal o enunciado oficial dessas figuras do bem, que o artista se vê obrigado a olhar para outro lado. Então a partir do século xix, e sobretudo no século xx, o erotismo se ligou à morte, à violência, à crueldade.
Agora, quando se lê a Priapéia ou Safo, o que se encontra? É outra coisa. Para nós, se soubermos ler, antes de mais nada nos passa uma impressão de um espaço de liberdade. Não são as mesmas questões que estão em jogo. A associação entre erotismo e morte é absolutamente moderna, e é contemporânea também. Mas quando você volta para as manifestações mais antigas, você vê que tem coisas muito diferentes. Você vê que há figuras do erotismo como festa, por exemplo. Essa ligação é muito recorrente. O erotismo como guerra, mas como uma guerra brincalhona, lúdica. Ou o erotismo oriental, mais ritualizado. Realmente são experiências outras. O que me surpreendeu quando fui ler Safo de Lesbos e a Priapéia é isso. Você tem um erotismo muito forte, uma coisa obscena mesmo, mas que não tem essa escatologia. Não tem essa coisa de chafurdar nesse lugar. Não é isso. A gente parece muito viciado em pensar o erotismo a partir dessa chave escatológica, mas há outros caminhos. Eu gosto muito dos autores do século xvi, xvii, que juntam o erotismo com o burlesco, que escreviam com a intenção de fazer rir. Isso também é um vetor para o qual existe um freio na literatura hoje.

– Então Sade e Bataille estão trabalhando com uma tentativa de alargar a experiência humana ou combater uma restrição anterior à experiência? Uma tentativa de quebrar valores vigentes?
Você tem uma impossibilidade da arte de enunciar esses valores, porque eles passam a ser enunciados por um discurso com o qual os artistas não mais compactuam. Antes, isso ainda era possível. No século xviii, por exemplo, enquanto o Sade estava pensando o mal, Diderot estava escrevendo coisas maravilhosas falando da virtude, do bem. Rousseau também. Era ainda possível sustentar um discurso sobre a virtude. O Sade pode até estar pensando também sobre a virtude, mas pelo avesso. Por isso ele é tão contemporâneo, ainda nos toca tão fortemente. Mas nem o Sade, nem Bataille, nem a Hilda Hilst estão fazendo uma apologia do mal. Porque essa é a leitura errada e moralista que se faz desses autores. Eles estão simplesmente vasculhado um outro lugar em reação a um discurso que já não é mais possível sustentar.

– Bataille diz que a experiência interior só pode ser positiva em relação a si mesma. Ela não pode se positivar na religião, na estética, na moral ou na comunidade em geral.
Bataille tem uma idéia de mal que é de uma singularidade. E quando esses autores todos estão falando da experiência do mal, não tem nada a ver com campos de concentração ou a violência política. É uma outra ordem de experiência. E também não existe uma proposição neles. Inclusive, um problema que a gente enfrenta com esse tipo de autor é que todo mundo está sempre buscando qual é a proposta dele. Eu não vejo proposta nenhuma. Existe, sim, uma investigação. E, no caso do Bataille, é interessante a questão de que a experiência é uma coisa, o discurso é outra. O discurso pode tocar na experiência, mas não a reproduz integralmente. Ele fala que o que conta é o vento, não o enunciado do vento. Não por acaso é um autor que trabalha muito com o limite da palavra. A palavra tem um limite, há o que não pode ser dito. O Bataille diz que a palavra “nada” é uma palavra impossível.

– E o Bataille consegue realizar essa experiência, ir para além da pura trama intelectual?
É difícil a gente responder isso, porque mesmo quando um escritor está contra o seu tempo, ele está dentro do seu tempo. A gente não escapa da nossa história. Bataille é uma figura inteiramente inserida na sua época, mesmo que muitas vezes brigando com certos vetores do seu tempo. Ele é um homem do século xx, está pensando a partir dos dilemas do século xx. Ainda que ele vá fazer essa evocação da experiência anterior, dos grandes místicos. Mas essa é a mesma leitura que Nietzsche fez da tragédia, do Dionísio, ou que Artaud fez dos taraumaras. O que é interessante é esse desejo, essa busca de uma alteridade. Mas que parte sempre de um certo lugar, que é o seu mundo, o seu tempo.

– E esse erotismo de Sade, Bataille, não vira também uma prisão? Não seria necessário inventar novas formas de erotismos?
Acho que sim. Mas é possível? Essa seria a questão. Conseguimos fazer isso? O grande medo hoje é não edulcorar a experiência. Porque nós temos toda uma indústria cultural edulcorando a experiência, domesticando ela. É tudo tão normalizado que nós tememos reproduzir essa diluição. Então como é possível hoje dizer o erotismo e o amor sem edulcorar? Como seria impossível sustentar o discurso de um Werther hoje, por exemplo? Porque você vai ouvir essas mesmas palavras nas piores canções do rádio. A indústria cultural se apropriou de tal forma desse discurso que ele nos soa banal. Mas fica a pergunta de como poderíamos dizer o amor sem ser via um dilaceramento? E isso para o erotismo é mais grave ainda.

– Você acha que a gente vive um momento erotizado? Paul Goodman dizia que a Playboy existe para a pessoa perder o tesão pela vizinha. Esse erotismo presente, publicitário, erotiza ou deserotiza o mundo?
Eu acho que o problema é a proliferação de imagens. Porque o que que é a fantasia erótica? Que experiência é essa? E quais são as condições para que a fantasia possa existir? A proliferação de imagens nos impede de fantasiar. Porque a fantasia para existir ela precisa de um vazio. É de vazio que nasce uma imagem. É preciso o nada, uma vacância, para que haja fantasia. E a proliferação de imagens sexuais anestesia, e também impede essa vacância, que é a condição para o aparecimento da fantasia que diga respeito a minha pessoa, a minha singularidade. Tem uma passagem na história de Juliette, que é a libertina mais interessante do Marquês de Sade, em que ela conta como procede para criar todos os delírios sexuais que ela cria. E ela dá uma espécie de receita. Parece uma coisa zen-budista: “Você limpa a sua mente, passa 15 dias sem ter nenhum pensamento, não deixa que nada atravesse sua cabeça”. Então é uma espécie de ascese. Você vê Sade, que é um escritor do excesso, realizando uma ascese. Em Bataille isso também está presente na idéia de experiência interior. Por isso que ele vai buscar fontes orientais.
Há um fenômeno crescente no Brasil, e muito presente nos Estados Unidos, que é o de clubes de sadomasoquismo, que é um tipo de experiência erótica em grupo totalmente normalizada. Não tem nada a ver com Marquês de Sade ou Masoch, esse sado-masoquismo que está se difundindo por aí. Porque eles são escritores e, como tais, são criadores de fantasia, e não de ação. Mas tem a ver com a necessidade de se voltar para um erotismo que seja muito violento. É quase como se só isso pudesse ser um apelo à carne. Porque para corpos muito anestesiados, você precisa de um tratamento de choque. O que eu acho mais grave é que essas coisas são muito moralistas. Elas são muito regradas. Não ritualizadas, e sim regradas. O problema outra vez é essa regra que antecede o fato, do mesmo jeito a imagem antecede a fantasia. Já está dado. Isso é um obstáculo à experiência. Eu sou batailliana nesse sentido. Experiência é singularidade.

Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro

Em 2006, para o número especial da Revista Azougue com o tema de “saque/ dádiva”, eu e o Pedro Cesarino nos encontramos com Eduardo Viveiros de Castro para uma entrevista num restaurante do Leblon. A conversa fugiu da antropologia propriamente dita para anarquismo ontológico, ecologia, commons e cultura. Uma tarde inesquecível.

– Vamos começar falando de um autor que nós gostamos, o Hakim Bey, a idéia de uma utopia pirata, do saque…
O Hakim Bey (Peter Lamborn Wilson), junto com os outros autores da coleção Baderna que a editora Conrad vem lançando, é praticamente ignorado em nosso meio acadêmico. Uma parte ínfima dos estudantes (pelo menos os de pós-graduação), e seus professores sabe de quem se trata. São autores que não têm trânsito algum. Hakim Bey. Eu citei este nome em vários contextos da academia, mas nenhum dos meus colegas antropólogos, brasileiros ou não, sabia quem era. Com as raras exceções de praxe: que me lembre, apenas Pedro Cesarino e Hermano Vianna, por aqui, e Justin Shaffner, ex-aluno de Roy Wagner em Virginia e hoje doutorando de Cambridge. Eu tampouco ouvira falar de HB até pouco tempo atrás, quando topei com uma rápida menção feita em um livreto (apenas mediano) de outro antropólogo, David Graeber, Fragmentos de uma antropologia anarquista, e decidi seguir a pista.

– O que é curioso, porque ele é uma referência entre o pessoal mais jovem, mas não do meio acadêmico.
Talvez seja conseqüência de uma separação entre os circuitos de produção conceitual da cultura culta ou domesticada e da cultura pop ou selvagem. Autores radicais que o próprio Hakim Bey utiliza como base, como Foucault, Deleuze ou Derrida, todo mundo conhece, ao menos de nome, porque são autores highbrow. Mas os livros que escreveram são obras complexas, de leitura difícil, que requerem um preparo filosófico considerável. Hakim Bey, que utiliza esses autores todos em sua obra, faz isso de uma maneira torcida, inserindo-os em uma interlocução pop, articulando suas idéias com processos e eventos radicalmente extra-acadêmicos, com o que está se passando de fato no presente. Além de estar trazendo para a discussão contemporânea pensadores tão interessantes como Fourier, ou como os socialistas utópicos, que foram excomungados pelos, de saudosa memória, socialistas científicos.

– Ao mesmo tempo, Hakim Bey não possui um respaldo da esquerda tradicional.
É verdade. Gente como ele está pendurada na fração libertária da esquerda americana, que passou por longos anos de hibernação e só voltou a se tornar mais visível depois da manifestação de Seattle em 2000. Foi lá que nos demos conta de que nem todo mundo era a favor de Bush nos Estados Unidos, que havia um movimento subterrâneo acontecendo há muito tempo, e que de repente veio à tona. Este movimento tem uma linha de continuidade que remonta ao século xix. Sai de Whitman, Thoreau, passa pela beat generation, pela contracultura, e segue em frente. É um movimento subterrâneo, que algumas vezes emerge, é só a maré virar. E o que impressiona é a total ignorância da academia brasileira em relação a isso. Dos Estados Unidos, conhecemos e consumimos prinicipalmente a cultura da direita. A esquerda é européia.

– Você tenta trazer esses autores para o discurso acadêmico, não só pensar eles, mas colocar em prática algumas de suas idéias. Um exemplo é o site AmaZone. Como estas tentativas repercutiram, ou não, na universidade? Você viu alguma reverberação em outros projetos?
Difícil responder. A história político-cultural brasileira é complexa. Suely Rolnik lembrava outro dia a cisão fundamental na esquerda brasileira, na virada dos 1960-70, entre o pessoal da contracultura e o pessoal da guerrilha, ou mais geralmente da militância política. Lembro-me bem disso; essa diferença foi vivida dramaticamente por minha geração. Havia um conflito entre o pessoal do chamado nacional-popular, do cpc, que possuía um projeto de revolução ligado a uma idéia de cultura autenticamente nacional, radical-reativa, pseudo-proletária, e os tropicalistas, que eram interna-cionalistas, simbioticistas, geléio-generalistas, tecno-primitivistas, que saíam por cima (ou por fora) e por baixo (ou por dentro) da mediocridade visada pelo projeto nacional-popular. Esse debate reencenava a grande discussão anterior, a da Semana de Arte Moderna. Ele penetrava completamente na academia, que estava organicamente ligada ao assunto, até porque vários teóricos faziam parte dela, sobretudo no lado do nacional-popular. Depois o debate de alguma maneira se perdeu. Hoje a academia não discute mais esses temas, com exceção dos que estudam os movimentos culturais brasileiros. Mesmo para as pessoas que fazem do tema um objeto de estudo, é apenas uma especialidade exótica, que não é mais tratada como uma questão existencial, como era na época.

– Quando você acha que esse assunto se perdeu?
Ele foi se perdendo aos poucos. Depois do tropicalismo, que foi de fato um movimento cultural de alcance nacional, de repercussão vertical, que ia da academia até a juventude, que era teorizado pelos críticos literários ao mesmo tempo que seus discos eram comprados pela garotada que tomava ácido no píer de Ipanema, não houve nada na mesma escala. Houve movimentos locais, mas com menor fôlego e repercussão. O pessoal da poesia marginal aqui do Rio, o Nuvem Cigana, por exemplo, que foi desembocar no BRock, no Asdrúbal Trouxe o Trombone. Havia uma vitalidade nestes movimentos posteriores, mas não havia a radicalidade original do tropicalismo. O tropicalismo unia finalmente Vicente Celestino e John Cage, a cultura popular e a cultura erudita, passando estrategicamente pela cultura pop, que foi a grande bandeira deles. Tudo isso veio evidentemente da antropofagia oswaldiana, a reflexão metacultural mais original produzida na América Latina até hoje. A antropofagia foi a única contribuição realmente anti-colonialista que geramos, contribuição que anacronizou completa e antecipadamente o célebre clichê uspiano-marxista sobre as “idéias fora do lugar”. Ela jogava os índios para o futuro e para o ecúmeno; não era uma teoria do nacionalismo, da volta às raízes, do indianismo. Era e é uma teoria realmente revolucionária…

– E que nunca foi bem absorvida no Brasil.
A antropofagia foi mal recebida por diversas razões. Primeiro porque o Oswald de Andrade era um dândi afrancesado (o paradoxo faz parte da teoria…) que não possuia credenciais acadêmicas. Ele não fez trabalho de campo como o Mário de Andrade, por exemplo. O Mário de Andrade colheu música popular, cantigas, foi atrás de mitos, inventou todo um olhar sobre o Brasil. Mas o Oswald tinha um poder de fogo retórico superior; sua inconseqüência era visionária… Ele tinha um punch incomparável. Se Mário foi o grande inventariante da diversidade, Oswald foi o grande teórico da multiplicidade – coisa muito diferente.

– E continua sendo.
Eu acho que a grande contribuição dos concretos ao debate cultural no Brasil foi a redescoberta que fizeram de Oswald, em parte por via da aliança com o tropicalismo. Essa redescoberta me parece talvez mais importante, no frigir dos ovos, que a teoria da poesia concreta enquanto tal. Se é que é possível separar uma coisa da outra. Afinal, o que os concretos nos legaram foi antes de tudo um paideuma rigoroso mas aberto, que transversalizou completamente os totemismos nacionalistas, colocando a arte brasileira em um campo estético poliglota e multí-voco, sem hierarquias prévias ou extrínsecas.

– O Balanço da Bossa…
Esse livro do Augusto de Campos foi uma intervenção iluminada. Um divisor de águas, ao perceber na primeira hora que o tropicalismo era a bola da vez. E o Augusto produziu aí uma teoria, que na verdade foi uma redescoberta do Oswald pela “alta cultura”, no sentido da “alta costura” dos concretos. Porque havia uma série de conflitos, e de repente o tropicalismo chegou para resolver o problema de alguma maneira, porque ele fez a síntese. Não uma síntese conjuntiva, mas uma “síntese disjuntiva”, diria Deleuze: Vicente Celestino e John Cage. E essa é a resposta que a América Latina tem que dar para a alienação cultural, é a única proposta de contra-alienação plausível, a única teoria de libertação e autonomia culturais produzida na América Latina. Agora todo mundo está descobrindo que tem que hibridizar e mestiçar, que os Mutantes, por exemplo, são legais. Os Mutantes são hoje a vanguarda da vanguarda pop, valores disputados nos mercados discográficos mais antenados das estranjas… Do lado mais highbrow, agora o pessoal se tocou também, por exemplo, que Hélio Oiticica é um gênio. Mas é claro que é. A gente já sabia disso… Demorou um pouco para a ficha cair.

– Quase quarenta anos.
É. Outro dia, conversando com amigos, alguém falava sobre como o capitalismo tinha mudado no mundo todo, sobre o sistema de controle da mão-de-obra do capitalismo moderno, a precarização, informalização etc. E aí alguém lembrou que isso sempre existiu no Brasil. E eu fiquei pensando, sempre disseram que o Brasil era o país do futuro, iria ser o grande país do futuro. Coisa nenhuma, o futuro é que virou Brasil. O Brasil não chegou ao futuro, foi o contrário. Para o bem ou para o mal, agora tudo é Brasil.

– Como diria o Rogério Sganzerla.
O Julio Bressane tem uma frase ótima, “mixagem alta não salva burrice”. Para dizer que não adianta, se o material é ruim, você pode montar do jeito que quiser que não fica bom. É a mesma coisa com mestiçagem ou hibridismo. Mestiçagem alta não salva nada, não salva democracia, não salva cultura. Se o que entra não presta (estou falando de fusão/difusão cultural, por suposto; por favor não me confundam), não adianta mixar. Por outro lado, eugenismo cultural também nunca deu certo… aquela história de raiz e de tradição, Deus me livre. Só tem tradição quem inventa. Agora, voltando para o que eu estava falando, da brasilificação do mundo, é um efeito ou exemplo reverso muito interessante do que o tropicalismo estava tentando dizer ou fazer.

– O modernismo heróico brasileiro, de Oswald e Mário de Andrade, também não se tornou uma espécie de tradição subterrânea, que aparece e desaparece durante todo o século? Um exemplo disso é a Mangue Bit, que é uma renovação do tropicalismo. Alguns lemas da Mangue Bit são bem sugestivos sobre o que estávamos discutindo: “tenho Pernambuco embaixo dos pés e a minha mente na imensidão”, ou a questão levantada por Fred 04 entre “mudar de lugar” e “mudar o lugar”…
Aí ele quase parece estar discutindo a teoria do Roberto Schwartz das “idéias fora de lugar”, tentando produzir uma outra formulação. Quando escrevi o prefácio de um livro sobre o novo ambientalismo na Amazônia chamado Um artifício orgânico, do Ricardo Arnt, disse que a ecologia colocava pra escanteio o problema das idéias fora de lugar. A ecologia era uma idéia sobre o lugar, então jamais poderia estar fora do lugar porque o que estava em questão era o lugar, não eram as idéias… Onde estamos? Esta é a questão propriamente “ecológica”.

– O Mangue Bit não está isolado neste sentido de problematizar o lugar, isto parece ser uma característica de vários movimentos da cultura atual.
Esse debate é na verdade uma estrutura de longa duração na cultura brasileira. O governo atual, por exemplo, está dividido ao meio, porque há dois projetos chamados de “nacionais”. Um é o projeto nacional clássico, no mau sentido da palavra, que é o de inventar (ou descobrir) essa coisa chamada de “identidade nacional”. O outro projeto é o que eu chamaria de “nós temos que desinventar o Brasil”. É um projeto mais internacional, que troca o “só nós, viva o Brasil”, pelo “tudo é Brasil” de que eu estava falando. Porque o mundo já é o Brasil, e esta questão já acabou, digamos assim… Uma frase que vivo repetindo é que o Brasil é grande, mas o mundo é pequeno; então não adianta ficar pensando só no Brasil. Essa frase tem a ver com um projeto hegemônico dentro do governo, baseado na soja, na industrialização, em um projeto que quer transformar o Brasil nos eua do século xxi. O Brasil que quer ser os eua quando crescer, que quer transformar seu interior inteiro numa espécie de Iowa ou Idaho, plantado de cabo a rabo de soja ou de cana e mamona para biodiesel. E a costa do país se tornará uma espécie de Florida, Miami, Bangkok, um puteiro à beira-mar, com gângsteres bem cariocas também, para dar uma cor local. Ou seja, o Rio de Janeiro. Esse é o projeto nacional-popular: “tragam a poluição”, “vamos industrializar”, ”viva o agronegócio”; e nas horas vagas, “vamos valorizar o folclore nacional”. “Folclore e energia”; para lembrar a famosa frase de Lênin: “O comunismo é sovietes mais eletricidade”. Pena que uma ministra – Dilma Roussef – que jurava por essa cartilha anos atrás hoje tenha escolhido só a eletricidade mesmo, afinal, esqueçamos essa bobagem de sovietes. Que pena.

– Ou seja, industrialização a qualquer preço…
Esse é o modelo Zé Dirceu. Agora a gente vê que, na verdade, muito do pessoal que lutou contra a ditadura estava querendo exatamente a mesma coisa que os militares. Eles se entendiam. A questão era apenas saber quem iria mandar. Mas tratava-se de fazer a mesma coisa: desenvolver o país. Pessoalmente, digo: dane-se o desenvolvimento.
E do outro lado você tem o pessoal que está interessado em pensar o mundo, não em pensar “o Brasil”. Você pensa no Brasil, você está aqui, não tem como não pensar no Brasil, mas você não precisa pensar o Brasil, pensar no Brasil já basta, está ótimo. Há duas maneiras de conceber a questão da “brasilidade”: ou você acha que ela é causa do que você faz (e de causa se chega rápido a desculpa, a princípio sagrado, o diabo); ou então você percebe que ela é apenas conseqüência, você não pode não ser brasileiro, não tem como não ser. Não tem jeito; a não ser que você se exile ou troque de língua, mas enquanto isso, tudo que você fizer é brasileiro. Relaxe e goze. O pessoal do nacional-popular quer que sejamos brasileiros por necessidade, por destino. E isso não dá certo. Não dá para fazer assim, tem que se esquecer o assunto e olhar para o outro lado. Quem sabe aí, inadvertidamente, se produza alguma coisa… Quem se preocupa com identidade, de língua, cultura, seja do que fôr, já “perdeu”.

– Olhar para fora…
Essa oposição entre um pensamento da interioridade, da identidade, das raízes, de um lado, e do outro o pessoal da exterioridade, da desterritorialização, do rizoma (para usar a linguagem do Deleuze) em vez das raízes, do pessoal do internacional – essa oposição, a meu ver, é intrínseca à situação latino-americana, a essa esquizofrenia cultural, a orientação para fora, para a Europa, que contraproduz uma orientação culpada para dentro, para seu país, do qual ao mesmo tempo você tem vergonha e orgulho. Há uma situação muito confortável da elite brasileira que é poder brincar de dominado quando olha para fora, dizendo “vejam só como eles mandam na gente, nós somos uns pobres coitados, estamos aqui dominados, explorados cultural e economicamente”, e brincar de dominantes quando olhamos para dentro e mandamos a cozinheira fazer nossa comida. Você é um explorado pela cultura francesa e pode dar um grito de guerra contra a alienação cultural, mas é sempre um patrão que reclama da alienação cultural…

– Então para habitar é preciso ser nômade?
É, acho que sim. Se você for ver, todo mundo que descobriu o Brasil, descobriu lá de fora. Gilberto Freyre, grande teórico da brasilidade, descobriu o Brasil em Columbia. Oswald de Andrade descobriu o Brasil em um quarto de hotel, provavelmente em Paris, numa daquelas viagens. Ou foi o Blaise Cendrars que contou para ele que o Brasil era legal. O samba, o Hermano Vianna mostra claramente em seu magnífico livro sobre o assunto, foi de certa maneira descoberto de fora. Então o Brasil é sempre visto de fora. Sem contar que só fala no Brasil, sobre o Brasil, quem manda nesse país. O problema nacional quem formula é a elite. Qual o problema nacional? O problema é que “o povo é um povinho ruim”, como a elite tantas vezes diz. O problema nacional é um problema da elite para a elite pela elite. O chamado “povo” está preocupado com outra coisa…

– E a Amazônia nisso tudo?
Eu talvez esteja mitificando um pouco a Amazônia, no que vou dizer. Mas acho que a Amazônia hoje é o epicentro do planeta. Do Brasil, certamente que é. Acho que o Brasil se deslocou pra Amazônia. Isso eu já tinha dito em 1992, quando escrevi aquele prefácio do livro do Ricardo Arnt e do Steve Schwartzman. Eu ali dizia que o Brasil se amazonizou. Tudo acontece lá, o tráfico de drogas passa por lá, os interesses econômicos estão lá, os grandes capitais estão fluindo para lá, as questões de ecologia, o olhar do mundo, a paranóia e a ilusão do paraíso, tudo está lá, ou voltado para lá. Para o bem ou para o mal, a Amazônia virou o Lugar dos lugares, natural como cultural, alías; é lá que está sendo cozinhado um gigantesco guisado cultural, e que daqui nós não temos a menor idéia do que está se passando. Multidões gigantescas indo a bailes que misturam funk, calipso, samba, música eletrônica, com djs famosíssimos em Belém do Pará que são caboclos, peão de obra, os peões do Chico Buarque do “Operário em construção” estão lá pilotando prato de toca-disco, são djs… Hoje, 80% da população da Amazônia está nas cidades. Manaus é um objeto sem similar no planeta, bem, talvez Lagos seja parecida, mas Lagos é um terror, em todos os sentidos, e Manaus não é um terror em todos os sentidos, apenas em alguns. Acho que os brasileiros do sul nunca pensaram direito a Amazônia, sempre voltaram as costas para ela. A teoria da sociedade brasileira, produzida pela elite brasileira no começo do século xx, estava obcecada pela questão da escravidão negra, por razões óbvias e justas: era pela escravidão que se devia pensar a falha, o pecado essencial, a raiz da vergonha nacional. Mas nisso, esqueceram da Amazônia, dos “negros da terra” (os índios), do país para além dos canaviais e dos cafezais. Ainda não conseguimos escapar do tratado de Tordesilhas. É necessário prestar mais atenção na Amazônia. O modelo carioca e paulista de exotismo era Salvador, Jorge Amado, candomblé, vatapá, mas Belém e Manaus eram um nada. Mas então aparece um escritor como o Milton Hatoum (por exemplo) e mostra o que estava acontecendo em Manaus na década de 40. Um outro mundo…

– E a internet, como você vê afetando essa relação entre centro e periferia? Agora, um garoto em Maceió pode ter o mesmo grau de informação sobre o mundo que um estudante da usp. Isso é um fato novo…
Isso é interessante. Qual é o modelo típico, a trajetória típica do intelectual brasileiro (ou, aliás, norte-americano também)? É o menino de província, nascido na cidade pequena, e que está o tempo todo sonhando com o Rio de Janeiro ou São Paulo. Esse modelo do sujeito que espera o suplemento dominical do jornal como se fosse a Bíblia, a hóstia, que encomenda livros da capital, meses a fio à espera das notícias culturais da metrópole. Éramos todos meninos do interior; inclusive os cariocas e paulistas – nossa metrópole era estrangeira, apenas. Isso acabou. Hoje tudo está dado. Você descarrega livro, pega tudo. Há uma democratização gigantesca, desde que você tenha um computador de banda larga, que no Brasil talvez se expanda com esse projeto do governo de pontos de inclusão digital, quiosques digitais, que é uma coisa interessante, treinar jovens de pequenas cidades do interior para operar internet. Há esse problema da perda da diferença, da estandartização, mas é aquela coisa: fica tudo igual, mas algumas diferenças são potencializadas ao mesmo tempo em que outras se equalizam. É uma coisa ambígua, feito a globalização. Lévi-Strauss falava já em 1952: “É inexorável, a cultura ocidental vai se universalizar, mas não pensem que isso vai diminuir as diferenças, elas vão passar a ser internas, em vez de ser externas”; e talvez aumentem, ao longo de dimensões de cuja existência sequer suspeitamos. A cultura ocidental vai explodir de diferenças internas, ao invés do modelo clássico da invasão dos bárbaros, hoje com vigor renovado graças ao suposto conflito de civilizações, o Islã e coisa e tal. Cascata. O Islã é o Ocidente. A cultura ocidental vai se universalizar e, no que ela se universalizar em termos de extensão, ela vai se particularizar em termos de compreensão, vai se tornar cada vez mais caótica internamente, cada vez mais dividida, produzindo toda sorte de esquisitices e originalidades e assim por diante. A internet vai ser um pouco isso… Estamos longe de saber o que vai acontecer com a internet daqui a dez anos. Em 1990 eu comprei meu primeiro computador. Em 1991 comecei a me comunicar por computador com outros colegas pela Bitnet, que era uma rede universitária sem a interface gráfica world wide web. Tudo o que havia era o correio eletrônico com colegas universitários. A Internet era uma rede de comunicação de cientistas, foi pouco a pouco sendo usada por semicientistas como nós, depois por toda a comunidade acadêmica e depois foi aberta para o comércio, virando isso que é hoje.

– Voltando para o eixo temático da revista, como fica a questão do saque e da dádiva tendo em vista as culturas indígenas?
É muito comum uma equipe de filmagem chegar numa área indígena e oferecer 30 mil dólares para filmar, e os índios conversarem entre si e fazerem uma contraproposta, 40 mil dólares, e fecharem o negócio. Fica combinado. Então se faz o filme e a equipe acha que resolveu o problema. Paga diretinho e coisa e tal. Quando o filme sai, o diretor recebe um telefonema dizendo o seguinte: “Você está nos devendo dinheiro, você roubou da gente!”. Aí ele diz: “Peraí, eu assinei um papel, eu já dei os 40 mil”, e os índios: “Não, mas você não pagou não-sei-o-quê”, ou então “não foi para todo mundo”. Aí ele de repente se dá conta de que os índios têm uma concepção da transação, da relação social em geral, radicalmente oposta à nossa. Quando fazemos uma transação, entendemos que ela tem começo, meio e fim, eu lhe dou um troço, você me paga, estamos quites, você vai para um lado, eu vou para o outro. Ou seja, a transação é feita em vista de seu término. Os índios, ao contrário: a transação não termina nunca, a relação não termina nunca, começou e não vai acabar nunca mais, é para a vida inteira. Ao pedir mais dinheiro, não é exatamente o dinheiro que os índios querem, mas a relação. Eles não aceitam que acabou o lance, acabou coisa nenhuma, agora é que vai começar. Donde os famosos estereótipos: os índios pedem o tempo todo. Sim, pedem. E reclamamos que o que eles obtêm é jogado fora de repente: as aldeias ficam cheias de objetos descartados que os índios pediram para nós, insistiram até conseguir, e quando conseguem não cuidam, jogam fora, deixam apodrecer, enferrujar. E os brancos ficam com aquela idéia de que esses índios são uns selvagens mesmo, não sabem cuidar das coisas. Mas é claro, o problema deles não é o objeto, o que eles querem é a relação. Uma vez a relação se mantendo, o objeto cumpriu sua função. Essa é a idéia da relação como algo interminável: a dádiva. Toda dádiva é interminável, é uma relação interminável. Toda dádiva produz uma dívida, e essa relação da dádiva com a dívida é uma relação propriamente interminável. Uma relação aberta vai ter que ser mantida, e só vai ser rompida se houver alguma violência. E mesmo assim: a violência ela própria é uma relação. A vingança é parte da lógica da dádiva.
O duplo estereótipo de que todo índio é ladrão (comum entre os brancos) e de que todo branco é sovina (comum entre os índios) define de maneira emblemática o abismo que existe entre duas concepções inconciliáveis do laço social.

– Esse é um sentido de dádiva, mas existe outro que é o da dádiva gratuita, divina…
Esse dom gratuito, unilateral e total, não existe entre os índios de forma alguma. Esse é um exercício de poder horroroso, o dom gratuito, Deus me livre de receber um. É o dom que não pode existir, porque se há uma sociedade contra o Estado, para usar a linguagem clastreana, ela não pode aceitar jamais a idéia de um dom gratuito. Dom gratuito é só outro nome do poder absoluto, quem dá de graça é o poder absoluto, porque ele pede tudo em troca. O dom gratuito é aquele cujo pagamento é infinito, porque não tem pagamento. O dom gratuito é aquele que eu não posso pagar, o dom divino.

– O anarquismo, ao obrigar a uma interiorização total do controle, acaba levando a isso, não? A uma idéia de dom gratuito…
Eu diria que a anarquia é um regime em que o saque é controlado pela dádiva, enquanto no nosso modelo é o contrário, a dádiva é controlada pelo saque. Se seguirmos as definições mais correntes do capitalismo, ele é baseado no saque, na extração, que é a palavra usada, da mais-valia da força de trabalho. Portanto, é a famosa frase do Proudhon: “A propriedade privada é um roubo”, que o Marx odiava, e o Hakim Bey gosta. Proudhon é um dos grandes ídolos de Hakim Bey. A propriedade privada é um saque, é um roubo, portanto o saque está no princípio da relação social capitalista, ela está fundada no saque. Então não é por acaso que os brancos vêem o roubo como o vício favorito dos índios, porque você vê no outro aquilo que traz consigo, assim como todo índio no fundo vê os brancos como sovinas porque no fundo ele “quer ser” sovina. O sonho indígena, um sonho de escapar do laço social, é um sonho de viver entre si, poder prescindir do outro para existir, como dizia Lévi-Strauss no final das Estruturas elementares do parentesco. Isso é um devaneio final do Lévi-Strauss, dá uma idéia de que a maior parte dos mundos póstumos das sociedades indígenas são mundos nos quais o incesto é livre, todo mundo casa com a irmã, com a mãe, não tem afins, não tem cunhados, porque no fundo para os índios o paraíso é um lugar onde você não precisa dos outros. O paraíso é o lugar onde você é auto-suficiente, portanto auto-produtivo, e o outro é desnecessário, o que sugere, a contrario, que a vida social está radicalmente fundada na relação com o outro. Em outras palavras: só não tem outro quem está morto. É justamente isso que eles estão dizendo, uma maneira irônica de dizer “Olha, só não tem cunhado quem tá morto”. Aqui na terra não tem escapatória, é o regime da dádiva, só escapa da dádiva quem está morto… Então os índios “são” sovinas, o imaginário deles está obcecado pela questão da avareza, a avareza é o insulto maior que você pode fazer e receber numa sociedade indígena, qualquer um que viveu lá sabe, o maior insulto não é dizer que sujeito é ladrão; também não chega a ser um insulto terrível chamar alguém de mau-caráter ou mentiroso; agora chamar o cara de avaro, de sovina, é sério; pode dar morte… E é o que eles mais dizem dos brancos: os brancos são constitutivamente os sujeitos que não dão, que se recusam a entrar nas relações sociais, precisamente. O cara vai dar a filha para o branco casar, como no famoso modelo tupinambá: dá a filha para o português casar esperando abrir uma relação, “ele agora me deve, ele é meu, porque me deve a filha que eu dei para ele em casamento”, e o branco se recusa a se comportar como um genro deveria, que é pagar tudo para o sogro e fazer o que o sogro manda, manter a relação funcionando. Os índios ficam escandalizados com a falta de senso social, falta de inteligência, na verdade, dos brancos. Porque os brancos não entendem. Acho que essa é a sensação profunda que os índios têm diante da nossa sociedade, os brancos não entendem nada do que é uma sociedade. E é verdade, eles entendem muito sobre como fazer objetos, fazem coisas maravilhosas, objetos espetaculares, são grandes tecnólogos, fazem milagres, objetos que a gente não entende como funcionam, são verdadeiros demiurgos tecnológicos; mas no que diz respeito à vida social, são de uma ignorância insondável. A sensação que eu tenho é que eles nos tratam como crianças, porque eles sabem que a gente não tem a menor idéia de como funciona uma sociedade. E nós os tratamos como crianças, porque achamos que eles não sabem mexer com as coisas mais elementares, não sabem operar um videogame, não sabem matemática…

– E como você vê a relação entre o Creative Commons e a dádiva?
O Creative Commons é uma tentativa, a meu ver altamente meritória. Eles estão tentando evitar que o mundo virtual seja cercado, assim como foi o mundo geográfico. Que ele seja privatizado. É uma tentativa de manter a informação como um bem de domínio público. O grande ponto para o Creative Commons é que a informação não segue o regime da soma zero, que ela pode ser passada para frente e não diminui com isso. Isso não significa que um autor deva ser plagiado; o ponto é facilitar a circulação. O grande processo que iniciou a Revolução Industrial inglesa foi o cercamento dos campos comunais das aldeias, usados por todos para pastagem etc., que eram os commons. Por isso que o projeto se chama Creative Commons. Os commons eram as áreas das comunidades rurais inglesas que eram de uso comum. As terras de agricultura em geral eram terras sem cerca, as divisões eram consensuais, você tinha a noção costumeira de onde começava e acabava a terra de alguém. Depois os grandes proprietários começaram a comprar o terreno, colocar cerca, impedir a circulação. O Creative Commons é uma tentativa de reconstituir esse regime da apropriação comum, do uso comum, do uso coletivo, no plano dos bens intelectuais, dos bens imateriais. A idéia é que o copyright significa “all rights reserved” e o Creative Commons significa “some rights reserved”. E você diz quais são eles. Existem várias fórmulas, vários tipos de licenças abertas. Trata-se de tentar criar um modo de coabitação no plano da informação que seja tolerável, e que evite o que está acontecendo, que é o controle da informação pelas grandes companhias. Agora isso tudo ainda é, de certa forma, um paliativo. O Creative Commons pode ser visto, como o é efetivamente pelos mais, digamos, radicais, como um estratagema capitalista. O verdadeiro anarquista não quer saber de Creative Commons nem de copyleft, é totalmente radical. A princípio estou com eles, acho a propriedade privada uma monstruosidade, seja ela intelectual ou não, mas sei também que não adianta dar murro em ponta de faca, tapar o sol com a peneira. Acho que você tem que transigir, tem que fazer algum tipo de negociação. O Creative Commons é um grande avanço intelectual.

– Até agora você está falando do veículo, e fico imaginando como isso se reflete na criação. A idéia de sampler, por exemplo, que é uma radicalização da idéia de citação.
Esse é o ponto. O Creative Commons está tentando consagrar do ponto de vista jurídico o processo de hibridização, a antropofagia, o saque positivo, o saque como instrumento de criação. Estão tentando fazer com que o saque e a dádiva possam se articular. Eu sampleio e dou, não é “eu sampleio e vendo, vou ficar rico”, a idéia é “sampleio, mas também dou”, um processo em que saque e dádiva se tornam, de alguma maneira, mutuamente implicados um no outro. A citação, que é o dispositivo modernista por excelência de criação, é na verdade o reconhecimento de que não há criação absoluta, a criação não é teológica, ex nihilo, você sempre cria a partir de algo que já existe. Como a famosa frase do Chacrinha: “Nada se cria, tudo se copia”. E como se sabe, nada se copia igualzinho, ao se copiar sempre se cria, quanto mais igual se quer fazer mais diferente acaba ficando: a “contribuição milionária de todos os erros”, dizia Oswald de Andrade, darwinista infuso. Foi de tanto falar latim que os europeus acabaram falando português, francês, espanhol…

– Lautréamont dizia que “a poesia deve ser feita por todos, não por um”. Ele parece ser um bisavô disso tudo.
É, na verdade, toda nossa teoria da criação é a de que existe uma oposição radical, uma oposição intransponível entre criação e cópia. O criar e o copiar são os dois extremos de um processo, quer dizer, o criador é aquele que precisamente tira de si tudo o que precisa, e o plagiário é aquele que tira dos outros. O plagiário é um saqueador, e o criador é o doador absoluto. A dádiva é uma modalidade da criação, a criação é uma modalidade da dádiva, talvez a criação seja a dádiva pura, e aí você vê bem as raízes teológicas desse modelo: Deus criou o mundo do nada, tirou de si mesmo. A criação é o modelo do poeta, do criador como uma divindade no seu próprio departamento, que é o modelo romântico do gênio como um criador, um pequeno deus, uma pequena divindade, que tira de si mesmo a criação.

– Do outro lado está o plagiário, o diluidor.
Isso está inclusive na célebre tipologia poundiana difundida pelos irmãos Campos: o mestre, o inventor e o diluidor. Ora, o que foi de alguma maneira se consolidando na consciência moderna é a idéia de que a criação precisa da cópia, a idéia da bricolagem de Lévi-Strauss, de que toda criação nasce numa espécie de permutação realizada sobre um repertório já existente. O fato de que não há nada absolutamente novo não torna o novo menos novo. Tudo já foi feito, não há nada de novo debaixo do sol, toda linguagem é finita, aquela coisa do Barthes, você só pode dizer o que já foi dito porque a linguagem restringe – isso é uma falsa alternativa. Hoje cada vez mais a matéria-prima sobre a qual a criação artística se exerce é a própria arte. Samplear tem um pouco disso: você está pintando a pintura e não mais a natureza; você está escrevendo a literatura. O sampler está redefinindo o estatuto da citação… Eu comecei a discutir algo assim no nosso site AmaZone. Nós só temos um dispositivo citacional, antigo, e aliás nem tão antigo assim, que são as aspas. Uma invenção complexa, um objeto muito mais complicado semanticamente do que parece. Mas está na hora de começarmos a inventar outras maneiras de articular discursos que não sejam as aspas, e o sampler é uma delas. Com o sampler você passa do todo à parte, da parte ao todo, do outro para você e de você para o outro sem costura…

– O xamanismo faz muito isso, esse uso aberto de discursos alheios.
Exatamente. E existe o discurso indireto livre, que é uma invenção genial do romance do século xix, que Bakhtin caracterizou magistralmente. É uma outra maneira interessantíssima de citar sem citar, meio mal-falada fora da literatura por ser considerada desonesta: pôr a palavra na boca dos outros. Mas acho que o discurso indireto livre é o discurso de base, é a forma básica da fala, é pôr-se na cabeça do outro e começar a dizer, a falar como se fosse o outro, raciocinar a partir do outro. Mas entre o discurso indireto livre e as aspas há muitas outras coisas. A possibilidade tecnológica que você tem hoje de cortar as coisas em lugares que antes não podia, há outra margem de manobra. Daí a importância do copyleft, porque ele permite que você dessubstancialize a obra, permite que ela seja distribuída, no sentido de distributed cognition. Quer dizer, ela se torna um objeto que pode divergir, heterogeneíza a obra. Uma obra que tem uma tendência, sobretudo a partir da época romântica, de ser vista como uma totalidade orgânica. A idéia da organicidade da obra, do caráter de ser uno e total. O que se vê hoje é que a obra é tudo menos una e total, a criação artística produz objetos que são tudo menos unos e totais. A famosa obra aberta do Umberto Eco, que já é um conceito antigo. Estamos na verdade fazendo um replay de discussões da década de 1960 e 70, ou antes ainda, o ready-made do Duchamp, e assim por diante. Um replay está sendo feito simplesmente porque agora existe uma potência tecnológica, uma possibilidade de atualização dessas discussões e de implementação que elas não tinham antes.

– Isso traz uma questão curiosa. O artista está virando mais um arranjador, um montador, do que um criador, digamos assim. Não é à toa que os dj viraram artistas, e não é à toa que o documentário ganhou tanto espaço. Como se não houvesse mais necessidade de criar informação nova. É muito fácil bater na autoria e esquecer os outros lados ricos e complexos que ela tem também. Quando se esvaece certa idéia da criação, não se consegue absorver a informação disponível, não se compreende para poder refazer.
O que pode ser repensado é o estatuto da noção de criação, não para dizer que não é mais possível criação, mas para redefini-la de uma maneira criativa, digamos assim. Temos que criar um outro conceito de criação. Trabalhamos atualmente com um conceito, por um lado, velho como o cristianismo (criação bíblica) e, por outro lado, com o do romantismo, a criação como manifestação, emanação de uma sensibilidade sui generis do indivíduo privilegiado. Esses dois modos de conceber a criação não dão mais conta do que está se processando nesse mundo atual. Está havendo tanta criação quanto havia antes, não creio que esteja havendo menos. O que houve foi uma mudança das condições. Mudaram as condições de criação, mudaram as condições de distribuição. Mas Beethoven não vai aparecer de novo, não porque um gênio como Beethoven não pode aparecer de novo, não é esse o problema. Pode aparecer com certeza, se é que já não há um milhão deles por aí, talvez tenha muito mais do que naquela época, já que há muito mais gente no planeta. O que não existe são as condições iguais às que tinha Beethoven para ser um Beethoven. As condições de restrição do ambiente cultural da Europa, o tipo de formação cultural que existia, o tipo de tradição de transmissão da informação. Os “Beethovens” de hoje tão fazendo outra coisa, não sei o quê exatamente. A criação artística está ficando cada vez mais parecida com a criação científica, que sempre foi um trabalho em rede, em que você trabalha em cima do trabalho dos outros, que exige todo um aparato institucional complexo de produção propriamente coletiva.

– Mas é engraçado que a ciência ficou a partir deste século muito atenta à arte. E agora a arte está começando a se abrir também…
A famosa história das duas culturas, a tese do C. P. Snow, segundo a qual havia duas culturas no Ocidente moderno e que esse era o grande problema do Ocidente: o abismo entre as ciências e as humanidades. Não sei se sempre houve isso, acho que não, mas de qualquer maneira hoje certamente isso acabou, porque hoje a produção artística exige um substrato tecnológico poderoso e, por outro lado, a ciência, no que realmente vale a pena fazer, está contemplando questões de natureza metafísica e cosmológica que envolvem necessariamente o recurso a outras espécies de linguagem.

– Neste sentido, você prefere o saque à dádiva?
Nós temos que virar Robin Hood. Saquear para dar. O ideal é mesmo tirar dos ricos para dar aos pobres. É isso aí, sempre foi e sempre será. A antropofagia o que é? Tirar dos ricos. Entenda-se: “vamos puxar da Europa o que nos interessa”. Vamos ser o outro em nossos próprios termos. Pegar a vanguarda européia, trazer para cá, e dar para as massas. “A massa ainda comerá do biscoito fino que eu fabrico”. A internet, ou as novas tecnologias de informação, ou as novas formas de criação, permitem que nós possamos, nós todos, realizar nosso sonho de infância e nos tornarmos Robin Hood. Quem não quis ser Robin Hood? E depois, como o mundo virou brasileiro, “tudo é Brasil”, a antropofagia mudou um pouco de contexto. A antropofagia deu certo, nesse sentido.

Entrevista com Braulio Tavares e Fausto Fawcett

2011. Número único da revista Pensamento Brasileiro, um desdobramento de um projeto que estava criando com meu pai, Gabriel. Decidimos, ao invés de realizar uma entrevista, criar uma seção na revista chamada “Sinapse”, onde convidaríamos duas pessoas, convergentes ou antagônicas, para falar sobre um tema. A ideia era fugir do personalismo da entrevista para o diálogo, o encontro. Para estrear a “Sinapse”, fui conversar com Braulio Tavares e Fausto Fawcett, com a Larissa Ribeiro me acompanhando para as fotografias. Foi a primeira vez que eles conversaram, embora tantos temas tivessem em comum – a começar pela ficção científica. A conversa foi deliciosa, e seguiu cerveja adentro depois que se desligaram os gravadores.

[Sergio] Atualmente está se vivendo, nas mídias todas, uma volta do realismo. Do Big Brother ao documentário, várias mídias trabalham sobre o conceito de “baseado em uma história real”. Como fica a ficção nisso?

[Braulio] Acho que o que existe na verdade é uma fabricação de fatos artificiais. Esses reality shows não são mais do que isso. É real porque, claro, você está trancafiando as pessoas e mostrando o que acontece lá dentro. Isso, evidentemente, é real, mas é um real manipulado. Tão manipulado, na minha opinião, quanto uma novela, um romance ou um filme.

[Fausto] Vira uma novela, na verdade.

[Braulio] Vira uma novela, porque alguém está roteirizando aquilo. Então se você está vendo, por exemplo, um Big Brother e, numa certa noite, está todo mundo vestido de turbante, árabes, odaliscas e tudo mais, não foram eles que escolheram. Aquilo ali é uma festa produzida pelo roteirista, pela direção do programa.

[Fausto] As pessoas esquecem que existe um roteirista por trás. E isso é um dado muito importante. O conceito da sociedade do espetáculo, do nosso Guy Debord, fará cinquenta anos e esta cada vez mais atual. Porque estamos completamente imersos em fabricações de shows de rea-lidade patrocinada. Os jornalistas, por mais que eles tenham uma boa intenção, já estão imersos nisso também, já fazem parte de um show.
[Braulio] Eles manipulam também.

[Fausto] Manipulam, e a coisa mesmo espetacular, que é a imagem de TV. Mesmo quando é A bruxa de Blair ou Big Brother, a sede de realismo passa rapidinho. Ela é suplantada logo por um tédio e um costume, você se habitua àquele negócio e fica sabendo que é roteirizado. Me lembrei de uma brincadeira do começo dos anos 1980, quando vários cineastas advindos da publicidade estavam caprichando nos cenários artificiais. Até o Coppola, que fez aquele filme com a Nastassja Kinski saindo de uma taça, One from the heart. Tinha um cineasta francês que fez A lua na sarjeta, Jean-Jacques Beineix. Bom, estou me lembrando disso porque nessa época apareceu uma comparação dizendo que houve um neorrealismo e eles estavam fazendo um neon realismo… As pessoas, dentro das grandes cidades, já estão acostumadas, nem se tocam, mas já está inserida no cotidiano deles esta imersão em imagens artificiais. Quando você diz que o realismo está voltando é como se fôssemos ter uma surpresa agora. As pessoas estão anestesiadas, estão habituadas. Então o que é um realismo hoje em dia?

[Sergio] Vocês acham que a gente está consciente demais das engrenagens do realismo?

[Braulio] O espaço do acaso está diminuindo no mundo. Tudo tem que ser previsto, numa lógica mecanicista lucrativa, ou pelo menos uma lógica de espetáculo, estética, um final previsto que tem que ser moldado, e o acaso não pode interferir nisso. Eu gosto do acaso porque ele é como uma bigorna do desenho animado que cai na sua cabeça.

[Sergio] Os estudiosos tentavam utilizar o co-nhecimento para pensar a tecnologia através da ficção científica, como está isso agora com a internet? A FC se tornou mais realista em termos de tecnologia?

[Braulio] Não acho que a internet tenha influenciado muito isso, não. A internet influencia na circulação dos livros, na criação de sites, na circulação dos textos, mas não acho que tenha influenciado tanto assim na literatura em si. Existe uma linha forte na ficção científica de hoje que é o que chamam de transhumanismo. A vida pós-biológica. Como é que você pode daqui a alguns anos ter uma maneira de fazer o upload de toda a minha memória biológica para um computador qualquer, por exemplo.

[Fausto] Esse transhumanismo está em voga e não é só de agora. Os futuristas tinham isso. Mas hoje você poder superar as limitações corporais, porque digamos que o corpo está obsoleto. Há próteses… O que é interessante nisso é que quando o cara fala em transhumano ele não se refere ao sistema nervoso central, o cérebro não é uma víscera.

[Braulio] Ou um computador de carne.

[Fausto] Ou um nhoque algoritmo. Nos últimos anos teve o projeto genoma, alguns passos da ciência foram dados para tentar uma mapeada definitiva. No fundo a gente continua com aquela ideia de Fausto, de Goethe, que é querer transcender. É a tara pela transcendência.

[Braulio] Além dessa coisa que você sabe que vai morrer de uma hora pra outra. O Greg Egan, um escritor australiano de quem gosto muito, escreveu uma série de contos sobre um artefato implantado na cabeça da criança quando ela nasce, chamado de joia, como se fosse um chip com uma capacidade enorme de informação. E tudo aquilo é ligado aos neurônios, então tudo que aquela criança está pensando, está passando pela joia. Um cérebro auxiliar artificial. E a criança vai crescendo. Quando chega à fase adulta ele ganha uma espécie de independência: eles abrem o crânio, tiram o cérebro de carne e deixam somente a joia lá dentro. E o narrador do conto que deu origem à série diz, que os mais velhos perguntavam se ele não tinha medo de destruir seu cérebro e ficar só com a cópia. E ele dizia que não, porque desde pequeno, quando lhe explicaram o que era a vida, ele se considerava o artefato. Aquele negócio de carne em volta é como se fosse um apêndice, você tira e continua vivendo normalmente. Então o eu não era aquele cérebro que podia adoecer, pegar um tumor, ter um AVC, mas a joia é inquebrável. Porque se de uma hora para outra eu tivesse um acidente com o meu corpo, era só pegar aquilo e botar num outro corpo e eu acordava de novo. É um conceito de eu diferente, porque a gente está acostumado a identificar o eu com o corpo. Então existe essa possibilidade, e mesmo que ela não seja científica, o simples fato de ela ser uma possibilidade literária e filosófica diz muito sobre quem nós somos ou gostaríamos de ser.

[Fausto] Acho que o grande barato da ficção científica, independente da internet, é que outra vida poderia vir, por caminho genético ou outro. Isso pra mim sempre foi o grande barato, o salto filosófico, que em outras ficções você não achava, porque elas ficavam só no campo das ideias. Acho que isso está até na história em quadrinhos, qualquer super-herói vira outra coisa, a fascinação de ser mais do que é. É como o super-homem do Nietzsche e o Super-Homem super-herói mesmo. Os dois em embate. Um vai por valores, sentimentos, para superar as fraquezas, e o outro já é pela mudança fisiológica mesmo.

[Sergio] Essa questão é interessante, porque ela passa pelo nosso conceito de identidade, inclusive na cultura. É como se perguntasse se somos a pureza de um corpo ou a soma de arranjos, experiências, criações, situações, encontros?

[Fausto] Queria te fazer uma pergunta, Braulio. Sempre reparei que a ficção científica está ligada a catástrofes. A partir da internet, com a banalização (no bom sentido) da informação, com a democratização mercadológica, o transhumanismo está começando a pipocar. Como a imaginação dos escritores vai lidar com isso, tem surpresa ainda?

[Braulio] Acho que a ficção científica virou um agregado de subgêneros, ela foi crescendo muito rapidamente em direções diferentes. Você fala em catástrofe, mas por quê? A ficção científica europeia e norte-americana é popular, não é coisa de intelectual. Ela chegou depois aos intelectuais. Então ela nasceu como forma de melodrama. E no melodrama você nunca fala de sentimentos modestos, e sim de sentimentos gigantescos, exa-cerbados. Então é engraçado pegar uma capa de revista de ficção científica, um cartaz de filme, e tem assim: “Eles estão tentando salvar o universo”. Não é o planeta Terra, o sistema solar, é todo o universo. É muita ambição gigantesca para o ser humano! Mas é isso. É um pouco a mentalidade adolescente de quem está descobrindo seus superpoderes imaginativos. Sempre que pego um livro de mitologia grega penso que aquilo é a ficção científica da época, tinha Hércules, Perseu e hoje é Wolverine, é Batman. Os heróis ganham a fisionomia do mundo para que o leitor se sinta refletido neles. O Homem-Aranha ficou daquele jeito porque foi picado por uma aranha radioativa. Só de ser radioativa o cara já sente que é do mundo de hoje. Isso é uma coisa legal porque você vê que há uma substituição de mitologia pelo tecnológico, porque o mundo é tecnológico. Você está mexendo nos nervos, na genética, no hardware do ser humano. Mas por outro lado tem a ficção científica utópica. Aquele negócio: vamos inventar a sociedade ideal. E é impossível. E as utopias da FC são sempre uma sociedade presa, fechada, que não admite o acaso, não admite o erro, mas sempre tem um transgressor lá dentro.

[Fausto] O mundo já foi totalmente religioso, depois foi muito humanista, e agora é como se estivesse tecnocêntrico. Essas três coisas ficam dentro da gente. A ficção científica tem o papel de cutucar a transcendência. Mas a gente não pode deixar de pensar que todo Jetson tem dentro de si um Flintstone. Vimos hoje com esse episódio [se referindo ao rapaz que assassinou alunos em uma escola em Realengo, no Rio de Janeiro] que ainda somos aqueles primatas. Quem explica essa maluquice que o garoto fez hoje? Dostoiévski, Kafka, esses escritores que foram fundo nessas questões, e em todos os tempos as questões que nos angustiam são mais ou menos as mesmas.

[Braulio] O Flintstone é o mesmo.
[Fausto] E o “eu” também. Euzinho, Eguinho e Myselfzinho, os sobrinhos do Patológico.

[Braulio] A questão é botar ordem no caos, porque o mundo é o caos. Pergunte a um recém-nascido o que ele acha do mundo. É o caos, aí ele vai aprendendo quem é papai, mamãe, o leite, é tudo narrativa. Tem aquele negócio redondo e o pai diz: chuta. É uma narrativa que o pai vai ensinar, que se chama futebol. Tem uma descrição que acho muito bonita. Tenho amigos que gostam de velejar, vão daqui para a Europa! Pergunto como eles lidam com ondas de 10 metros de altura. Aí eles filosofam, dizem que o mar é a metáfora da vida. Dizem: você controla o mundo? O Rio de Janeiro está se movimentando, um bueiro de Copacabana pode estourar do seu lado. Como você se relaciona com o mar? Não é querendo mandar nele. É observando, conhecendo e negociando com ele. A única maneira de se relacionar com o mar é a mesma de se relacionar com o mundo. É criando o seu roteiro. Você tem que negociar um trajeto no meio desse caos de um jeito que você não desperdice sua vida, se escondendo dela, mas também que não perca ela ao se expor demais. A narrativa para mim é isso. De fato, nossa vida é roteirizada. Então a onda é organizar uma coisa que é caótica e, quando está tudo organizado, abrir uma janela para deixar um pouco de caos entrar. O acaso entrar. Se permitir fazer coisas diferentes.

[Sergio] Aliás, quais são os planos para agora?

[Braulio] Tenho trabalhado ultimamente com traduções. É uma forma de prostituição onde eu escolho os clientes. Até o fim do ano, lanço uma coletânea de contos meus e duas antologias temáticas de contos fantásticos.

[Fausto] A Martins Fontes lançará minha obra, com um inédito, Favelost. Tem um outro livro que se chama Pororoca rave, que não sei ainda por onde vai ser lançado. Tem um seriado, na segunda temporada no Canal Brasil, que se chama Vampiro carioca, onde escrevo e atuo.

Entrevista com Rogério Duarte

Em 2002, Waly Salomão me procurou para sugerir que eu publicasse um livro do Rogério Duarte, designer gráfico inovador (autor do cartaz de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, entre outros) e um dos expoentes da Tropicália. Narlan Matos estava trabalhando com Rogério na sistematização do seu arquivo. Claro que aceitei na hora. Trabalhamos por vários meses na organização do livro, com a ajuda preciosa da Mariana Rosa e toques fundamentais do Waly, e depois trouxe o Rogério, que morava em Salvador, para o Rio, para ver a organização final. O livro, “Tropicaos”, trazia alguns textos fundamentais de Rogério, como “Notas sobre o desenho industrial” e o até então inédito “A grande porta do medo”, um relato sobre a tortura que ele sofreu em 1968. Aproveitei a viagem de Rogério ao Rio para fazer uma entrevista na sala da minha casa, uma conversa sobre design, tropicália e poesia:

– Rogério, durante a sua trajetória, você sempre foi um radical defensor do desenho industrial, muitas vezes em oposição à arte dita “pura”…

Sim. No meu texto Notas sobre o desenho industrial, por exemplo, ali está toda uma estética fanática da negação da arte. Era uma posição muito influenciada pela discussão do design internacional, dos grandes teóricos do Arts and Crafts, da Bauhaus. Havia uma idéia que existe um mundo artesanal e um mundo industrial. Então naquele texto eu sou um fanático apologeta da negação do gratuito. Ou seja, para mim interessava qualquer coisa apenas na medida que servisse para alguma coisa, que tivesse uma função. A idéia do funcionalismo, da racionalidade, que eu havia herdado daquelas escolas, mas que adotei até porque fazia todo um sentido pessoal para mim. Porque eu me lembro, por exemplo, de quando ia para a casa dos irmãos Campos, achava um desperdício todos aqueles livros de arte que eles tinham. Todos eles cheios de criações, e acabava tudo muito restrito. Eram distribuídos para um número muito pequeno de pessoas. Eu era muito mais interessado em fazer um produto que fosse para um supermercado, por exemplo, onde todo mundo poderia ver, do que fazer arte.
Essa era um pouco a ideia do design na época, de que a arte acabou. Arte era uma coisa burguesa, pertencente a um determinado momento pré-moderno, pré-industrial. O que era uma visão um pouco sectária, eu diria. Hoje eu cheguei a uma espécie de meio-termo. Mas naquele tempo não me interessava a arte, aquela coisa da dependência, que é o mais terrível. E muitos artistas ficavam presos naqueles circuitos, de vernissages, críticos. Aquilo me enojava. O que é a arte? O inútil. E eu era designer, o que me interessava é o útil. Então eu dizia “quando uma coisa não serve pra mais nada, vira arte”. O carro ficou velho, não serve mais para andar, vira arte. O texto já não diz nada prático, vira literatura. No fundo era uma visão muito primária, e os críticos mais inteligentes, da esquerda mais sofisticada, o Leandro Konder e o Carlos Nelson Coutinho, me esculhambavam…

– Mas essa postura, por mais sectária que fosse, foi necessária para a construção de sua linguagem, não?
Aquilo fazia parte de uma renovação necessária. Eu me lembro o quanto me irritava a idéia de que um pintor qualquer começasse a fazer cartazes, porque eu dizia “isso é falsificação”. Eu estava tentando criar uma linguagem de design gráfico no Brasil, e eles estavam pegando uma coisa que já existia num outro contexto de produção individual, num quadro, e reproduzindo e transformando em cartaz. Que era a tal idéia de reprodução barata. A reprodução barata não tem a qualidade da pintura, a textura da tela, a tonalidade. Então há uma perda na medida que se reproduz o original. Então eu dizia, vamos acabar com o original. Vamos trabalhar a linguagem do próprio meio de reprodução. Isso já havia ocorrido na história da arte. Na gravura, por exemplo. Inicialmente, os desenhos eram feitos por pintores, e havia uma artesão gravador que cavava aquilo na madeira, para reproduzir em série. Havia a caligrafia pessoal do pintor, mas um xilógrafo copiava o desenho e reproduzia aquilo em série. Eram meios de reproduzir uma coisa que era produzida de outra maneira. Posteriormente, com Goeldi, por exemplo, o próprio desenhista já se atinha às linguagens próprias da madeira. E isso era o ideal do design, deixar de buscar seu repertório em fontes artesanais anteriores. Cada meio tem suas próprias especificidades. Ou seja, como no início da gravura, havia no design uma briga entre a natureza do original e a reprodução. E assim, toda reprodução implica numa degeneração. E eu tentava romper com isso, trabalhando com as especificidades do offset, por exemplo. Assim como Goeldi liberta a madeira de sua função de citar os desenhos, eu queria libertar o offset. Usar os chapados, as retículas, a tipografia. Criar a minha linguagem com isso. E nisso talvez consistisse a modernidade do que eu fazia, embora não fosse o gênio inventor dessa teoria.

– É esse uso da linguagem do offset que causa o espanto do cartaz de Deus e diabo na terra do sol?
Sim. Neste cartaz eu utilizo toda uma nova concepção de cor, que é fruto de toda uma pesquisa profunda. O offset se caracteriza pela pouca quantidade de tinta. Então, se você pega uma fotografia, por mais bela que seja, e apenas a reproduz sem conhecer direito as especificidades do offset, e se você imprime só o vermelho, fica desbotado. Há uma perda muito grande. Então você tem que estudar o meio que trabalha e tirar dele o máximo partido. E foi o que eu fiz. Por exemplo, no cartaz do Deus e diabo na terra do sol, era o vermelho que assustava. Para dar mais colorido, conseguir uma cor mais forte, possibilitar que o espectador sinta a tinta, eu formei o vermelho com seus componentes, utilizando a teoria da cor moderna. Misturei o magenta com o amarelo, que são os componentes em termos de pigmento para formar o vermelho. E aquilo causou um efeito muito forte. O que era a concretização de toda minha pesquisa sobre design. E assim eu consegui que meus trabalhos passassem a ser não mais uma referência de uma outra coisa, mas obras em si, reais. O papel expressava.
Há uma história interessante sobre esse cartaz, porque mesmo Glauber, com toda sua clarividência, demorou para sacar o que eu estava querendo. Ele dizia “Rogério, você é bom, não tem que ficar fazendo cartazes”. E eu pensava, “pobre Glauber, não sacou nada…” Depois eu pude brincar com ele, e dizer: “Gostei do filme que você fez para o meu cartaz…” E essa inversão é importante. Muita gente diz “o poster do filme”. Não é o poster do filme, é o poster do próprio poster. Muita gente olha o poster e não vai ver o filme. Então eu tenho um contato direto, estou falando com quem está vendo esse pôster. E é o mesmo com as capas de discos. Ou seja, a capa perde seu caráter puramente acessório, de ser uma cobertura cuja função seja apenas proteger uma coisa, para se tornar uma mídia, um suporte. Nesse ponto eu digo que fui importante, porque eu assumi a postura de ser um designer. Havia aquela idéia de artes superiores e artes inferiores, o que é uma discriminação, e eu era um militante radical contra isso. Eu dizia, não importa a pintura, a pintura é para os pintores. E eu não sou pintor, sou um designer.
Agora, junto com isso, vinha toda uma angústia, um medo. Você vê, são as contradições. Você luta por uma coisa, e depois que ela acontece, começa a ter uma postura contra ela. Quando ela descamba, exagera demais para um lado, diz “também não era tanto assim”. Você é pela revolução, e depois a vê destruindo uma série de coisas que eram importantes… Isso aconteceu com o William Morris, por exemplo. Ele foi o pai do design inglês, do Arts and Crafts, e no final ele diz que a máquina é o mal. No Notas sobre o desenho industrial, eu falo sobre isso, que aquele período foi a primeira explosão de mau gosto da história, que é o kitsch. O kitsch é isso, a reprodução em série de coisas que eram aristocráticas, com todo seu repertório, o que causa um barateamento. E isso levou o William Morris a reagir negativamente em relação a tudo que ele havia conquistado. É natural esse medo, de estar contribuindo para a perda de muitas coisas que são culturalmente interessantes.

– De qualquer forma, essa sua postura radical de afirmação das artes gráficas foi muito importante para o desenvolvimento do design gráfico brasileiro…
Certamente. Se eu me olhar agora, como se fosse outra pessoa, porque nós temos que ter sempre uma grande humildade, mas não se pode também negar o eventual valor que você possa ter estabelecido, senão é uma destruição de si próprio, eu verifico que tive uma real importância na afirmação da dignidade do trabalho gráfico. Eu briguei feio com muita gente por isso. Deixa eu dar um exemplo: quando eu trabalhava com o Aloísio Magalhães, ele me indicou para fazer a direção de arte do Laboratório Maurício Vilela. Então eu fiz um projeto, e apresentei para o bam-bam-bam do pedaço, um diretor. E ele ficou raivoso, gritando “isso é fascismo, você deveria ter me apresentado várias possibilidades para eu escolher uma”. E eu respondi para ele: “o senhor é médico, por acaso você apresenta vários diagnósticos para o paciente escolher um? Isso aqui que eu estou fazendo é sério, rapaz. Isso é ciência. Se você quer vários, chame vários profissionais, cada um tem uma linguagem. A minha é esta. Eu não tenho que fazer outro.” Daí eu fui demitido. Ao longo da minha vida, eu gramei muito por causa dessa postura radical que adotei.
O Glauber sacou qual era a minha briga, e por isso ele foi propiciador da minha obra-prima. Pela confiança, pela fé que ele depositou em mim. Quando ele me chamou para fazer o cartaz do Deus e diabo na terra do sol, já haviam dois cartazes prontos. E que tinham sido feitos exatamente dentro daquela mentalidade que eu queria destruir. Um era do Ziraldo, com um canganceiro que repetia o seu estilo, que era um Ziraldismo. O outro do Calazans Neto, que era uma gravura, um Calazansismo. Cada um havia colocado no cartaz o seu ego, o seu estilo, e que não era o de Glauber. Mas eles eram duas figuras com muito espaço na época, e haviam feito os cartazes sem que o Glauber encomendasse e mandado de graça para ele. Mas o Glauber recusou os dois, e disse que quem ia fazer o cartaz era eu. E ele me deu toda liberdade, tanto que foi viajar para a Itália, e só viu o cartaz quando já estava pronto.

– E por que você parou de trabalhar mais assiduamente como designer?
Eu tive uma carreira acidentada, na medida em que fui preso e torturado, e assim posto fora de combate muito cedo. E isso teve um lado ruim, mas teve outro bom também. Porque hoje eu percebo que, se não continuei produzindo uma obra gigantesca, fiz poucas coisas que puderam ser melhor apreciadas. Tanto que hoje, quando me pedem um trabalho, eu recuso dizendo que pertenço a uma época. Fiquei com esse orgulho. Senão posso queimar o filme. Minha linguagem pertence a um momento histórico e eu não sou um comerciante. Estou ligado a uma revolução, a um período, a uma geração. E o meu trabalho todo faz parte disso, e eu não vou ficar como um sobrevivente de mim mesmo, um designer fazendo coisas que não tem nada a ver com os objetivos daquela revolução. O meu trabalho ficou muito privilegiado por isso, essa coerência misteriosa que eu como pessoa não possuía, mas que de alguma maneira tinha a intuição. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde as pessoas iam sacar que era aquela a linguagem do meu tempo, e não aquelas que eram feitas antes. Que a linguagem deles já estava morta, eles apenas lutavam inutilmente por sua permanência. Até hoje é essa ainda a briga. É como o xadrez, se você fala para um jogador sobre qualquer mudança no design das peças, ele treme nas bases. No entanto Max Ernst, Marcel Duchamp, o pessoal da Bauhaus, todos eles tentaram uma nova linguagem para as peças de xadrez, como houve mudanças no estilo das letras. Mas o conservadorismo dos jogadores bloqueia. E eu continuo esse trabalho, que é lento e árduo. Mas que é a função do artista de certa maneira, compatibilizar o homem com o mundo. Tirar o fosso entre o de dentro e o de fora. A arte tem essa função, de você poder humanizar a modernidade, se integrar com os novos meios de comunicação, os novos suportes. Criar essa linguagem que vai construir a harmonia, destruir a contradição entre sujeito e objeto.

– Rogério, depois do desenho industrial, me parece que a atividade a qual você permaneceu mais fiel em sua vida foi a poesia…
A minha relação com poesia sempre foi uma coisa inexplicável. Eu sempre tive uma volúpia terrível, nunca soube o que queria fazer. “Sede de viver tudo”, como dizia Nelson Ângelo naquela música, que a gente gostava tanto na época. Isso você pode encontrar nos meus textos, essa inconformabilidade com a limitação humana, a vontade de ser Deus. Querer ser eterno, querer ser tudo. Nunca houve nada que eu não quisesse ser. Matemático, capoeirista, amante. E poeta também, por que não? Porque a poesia sempre foi algo muito forte, eu sempre li muito. Tanto que até hoje sei poemas inteiros decorados.
Mas o meu problema é que eu nunca consegui escrever poemas certinhos, bem feitos dentro de um cânone. Poemas de outras pessoas que quando eu lia me impressionavam, até talvez pela sua não originalidade. Porque para você escrever realmente bem, tem que ser não muito original, tem que estar, de certa maneira, vinculado a algum conceito já pré-existente. De belo, por exemplo. E então, nessa poesia beletrista, o grau de redundância é maior. E os meus textos, desde a adolescência, eram tão loucos, tão absurdos. Eu tentava escrever de uma forma mais convencional, mas não conseguia. E por isso eu fiquei fascinado assim que li os primeiros textos do Artaud, porque nele havia a questão da doença mental, da incapacidade de formular, daquela angústia de se expressar do louco. E eu logo me identifiquei, porque aquilo trespassava o meu texto também. Tanto que tem aquele poema meu para o Ezra Pound, que é exatamente sobre isso: “Como é que é meu caro Ezra Pound? Vou acender um cigarro daqueles para ver se eu consigo lhe dizer isto. Andei fazendo um pouco de tudo aquilo que você aconselhou para desenvolver a capacidade de bem escrever. Estudei Homero, li o livro de Fenollosa sobre o ideograma chinês, tornei-me capaz de dedilhar um alaúde, todos os meus amigos agora são pessoas que têm o hábito de fazer boa música, pratiquei diversos exercícios de melopéia, fanopéia e logopéia, analisei criações de vários dos integrantes do seu paideuma. Continuo, no entanto, a sentir a mesma dificuldade do início. Uma grande confusão na cabeça tão infinitamente grande confusão um vasto emaranhado de pensamentos misturados com as possíveis variantes que se completam antiteticamente.”. Mas, no fim, fui descobrindo que essa própria dificuldade miraculosamente depois pode vir a se constituir uma certa qualidade…

– A sua poesia, nesse sentido, é um pouco precursora da poesia dos anos 70, que possuía essa aceitação de elementos estranhos, o que possibilitou uma linguagem muito liberta. O que é uma característica da dita poesia marginal, essa aceitação das dificuldades de expressão individuais como uma possibilidade.
É curioso, quando você coloca isso, eu percebo que aconteceu com o texto o mesmo que com o desenho industrial, a aceitação das limitações do veículo. Aquilo que era um defeito, acaba virando uma qualidade. Aquilo que era privação de uma coisa, acaba virando na verdade a afirmação de outra. Eu lembro quando era jovem, e lia poetas como o Afonso Romanno de Sant’Anna, por exemplo, e ficava espantado como esse cara conseguia escrever direitinho. Eu nunca conseguirei isso. Mas eu busco uma coisa do indizível que só esse bem-fazer já impede. O indizível tem que ser maldito, no sentido de que não se pode jogar luz na treva sem destruí-la. A treva tem que ser treva. Tem uma citação de Al Rallash que o Waly Salomão adora, “a obscuridade para mim é luz bastante”. E essa obscuridade, no fim, acaba virando uma opção. Porque na medida em que a coisa é aceita pelo establishment, que consegue encontrar seu lugar dentro dele, ela também abre mão do futuro.

– Essa corajosa aceitação da marginalidade, do risco em lugar ao estabelecimento, talvez tenha sido uma das características das melhores pessoas do seu tempo.
Certamente. Hoje eu percebo que não é eu, que não há eu, o que há é o tempo. O tempo que passa pela gente. Então aquele momento dos anos 60 foi maravilhoso. Havia uma coisa engraçada, um brilho, as pessoas esperavam alguma coisa da gente. Aquele foi um momento, uma situação astrológica, histórica, sei lá, que nos possibilitou essa ruptura. Havia na minha geração uma postura muito auto-afirmativa, e afirmativa do Brasil. Havia um orgulho muito grande, a idéia de que somos nós a vanguarda mundial, não os Estados Unidos ou a Europa. Esses caras tinham que vir aqui aprender com a gente, e não o contrário. E o contrário é o que acontece normalmente no Brasil, até hoje. Você espera que alguém faça algo lá fora e só então se sente autorizado a fazer também. Para romper com isso, inicialmente, foi necessário toda uma introjeção, uma antropofagia. A gente devorou tudo que se fazia no mundo, estudou, até que, de certa maneira, teve um pouco de coragem. Porque havia figuras geniais, Glauber, Oiticica, Caetano, Gil, Torquato, e todo mundo se sentia capaz. Agora sem grande idéia que fosse uma coisa totalmente original. Mas foi o que possibilitou o Cinema Novo, a Tropicália, a minha revolução gráfica. Estávamos vinculados a algumas coisas, mas, como no cartaz do Deus e diabo na terra do sol, em que eu uso a tipografia suíça, o que era a chamada boa gráfica na época, mas na escolha da cor, da foto, do tema, de tudo, colocava um vigor que era o que o Brasil representava. Não uma ignorância, mas a reapropriação do mundo e uma síntese. E a volta da linguagem popular. Eu vivi uma época muito bonita, um momento criativo, em que todos nós éramos geniais. Como na revolução russa. Você pega Maiakóvski, Iessiênin, Eisenstein, aquilo tudo era muito criativo. E vejo que agora é possível estar se esboçando um renascer da criatividade. Ou seja, que esses burocratas já encheram o saco o bastante.

– Como no poema de Lawrence Ferlinghetti, “estou esperando um renascer do maravilhoso”…
Exatamente. Então nesse momento atual, com toda essa angústia, poder ver melhor o maravilhoso nas coisas. Não ficar do lado daquilo que foi sufocado, nem daquilo que foi o sufocador. Mas simplesmente ter resistido, e poder durante um momento ainda ter um alento.

Entrevista com Alejandro Jodorowski

Em 2007, Alejandro Jodorowski veio para o Brasil, para participar de uma mostra dos seus filmes. Conseguimos marcar uma entrevista com ele, para o número especial que estávamos fazendo da revista Azougue, sobre “invenção/experiência”. Fui para a conversa com o Renato Rezende e a Gabi Campos, que filmou tudo (gostaria de rever esse material). Conversamos soltos, Jodorowski leu poemas e tirou tarô. Depois, mandou uma mensagem dizendo que tinha achado aquela uma das entrevistas mais fortes da sua vida. Escolho ela para abrir esse blog de entrevistas, poemas e ideias soltas:

– Viemos aqui falar de poesia.
Ah, que bom. Vocês sabem que eu escrevo poesia todos os dias? Assim que me levanto, escrevo uma poesia.

– Como uma meditação?
De certa maneira. Cada dia eu faço uma.

– É um método surrealista, de escrita automática?
Como dizer? Não é um automático, onde você fala qualquer coisa, qualquer besteira. Você entra num profundo sentimento e expressa o que sente sem nenhum limite.

– É uma auto-investigação?
Sim, sim. Claro que é um trabalho inútil, porque a beleza é impossível. É como a busca do impossível.

– Isso é a poesia?
Sim. Eu digo que a poesia é o excremento luminoso de um sapo que comeu um vaga-lume.

– Você disse que “o tarô é uma arte. E como toda arte só se realiza ao transformar-se em poesia…”
Sim, sim. Certo. Veja, hoje me levaram para almoçar, porque eu queria conhecer um restaurante tipicamente brasileiro. Chegou uma mulher vendendo pequenos sacos de pano e eu comprei um saquinho para o meu tarô. Sempre ando com um tarô. Esse é um saquinho brasileiro para um tarô. (risos) Isso por si só já é um ato poético. Você perguntou, como a poesia é tarô? (Tira o tarô do bolso e estende as cartas em leque, com a face para baixo) Vou explicar porque o tarô é poesia. Escolha uma carta. Qualquer uma. Ah, este é o sol. Essa carta poderia ter qualquer significado. Agora escolhe uma segunda carta. A estrela. E mais uma, a última. Essa carta é o julgamento. Você escolheu três cartas, por acaso. No entanto, nas três cartas há um brilho luminoso na parte superior. Há um sol, aqui, esse sol se multiplica em sete estrelas, e por fim do sol sai um ser. Acima você tem a entrada do mundo luminoso do inconsciente. Ao tocar o mundo luminoso do inconsciente, que é o seu retrato, porque tem um rosto olhando para ele, você se espalha em diferentes energias, que são as sete energias dos seus chacras, e então abre-se o seu inconsciente e sai o ser que o povoa. Você escolheu, como se por acaso, as únicas cartas em que os personagens estão desnudos. Porque todo o tarô está vestido (mostra as cartas). Se estão nus, é porque estão buscando a verdade. E como a verdade é inalcançável, o resplendor da verdade é a beleza. O resplendor da verdade é a beleza. Esta aí, na carta que você tirou. Então, na carta que você tirou há um rio, que é o atravessar de um rio… que é derramado por essa mulher, que é a alma do mundo, para a transformação da alma da terra, andrógina, que surge chamada pela mente superior. Assim se realiza a poesia. Sua pergunta é complexa… poderíamos falar o dia inteiro. Por exemplo, pergunta sobre um detalhe das cartas, onde caia sua atenção, ponha o dedo em algo, qualquer detalhe…

– Essa água dourada que cai do jarro que a mulher está carregando.
Repare, ela tem duas águas. Uma água azul, escura, que sai de um jarro por entre as suas pernas, que é a água criativa, sexual, e você nota a água amarela, que é da cor dos seus cabelos, da cor das estrelas, porque amarelo é a cor das estrelas, então você está falando da água espiritual, emocional. É isso que ela está dando a este mundo. Mas, já que essa água tem relação com seus cabelos, e seus cabelos estão crescendo, talvez ela esteja absorvendo a água, não dando. Absorvendo a energia que nasce nas estrelas.

– É sempre um processo de transformação? Isso é a poesia, também, um processo de transformação?
Sim. E o tarô pode criar mundos. Mundos de interpretação simbólica.

– Hakim Bey, um anarquista ontológico, diz que “a feitiçaria se recusa a ser mera metáfora para a literatura. Ela insiste que os símbolos devem causar eventos, assim como epifanias pessoais”. Qual a relação entre arte e magia?
O criador da magia em nossa cultura é Eliphas Lévi, que se chamava Alphonse-Louis Constant, durante o século xix, que escreveu Dogma e ritual da alta magia, onde ele faz uma história da magia. Depois os ingleses da Aurora Dourada, e Aleister Crowley, que se dizia uma reencarnação de Eliphas Lévi, continuaram com o tema da magia. Mas Crowley era um poeta, assim como o próprio Lévi. No seu renascimento, a magia nasceu unida à poesia, porque um dos grandes aspectos da magia são as incantações. Quando a palavra é criadora. Um grande progresso da cabala são as palavras que são incantações, e que produzem transformações cinéticas, ou na natureza. Então claro que a verdadeira poesia está ligada ao milagre. Darei um exemplo do que faz a poesia. Eu estava nessa época no Chile, era um adolescente, um garoto de uns 20 anos e era muito amigo de um psicanalista. E um dia ele me disse que acabara de passar algo incrível, porque, ele disse, você sabe que um trauma é algo desagradável, mas tenho um caso de alguém que se tornou louco devido a um pensamento poético que teve. Há um rio em Santiago, o Mapocho, e no poente ele se pôs a observar o rio. As águas do rio passam, passam… o reflexo das estrelas permanece. Ficou louco. Isso se deu porque era uma pessoa comum. O primeiro pensamento poético que teve tornou-o louco. E isso explica tudo. Tenho livros de poesias, mas os publico muito pouco, a poesia não se vende. Nunca falei dessas coisas, mas elas me interessam muito. Quando você realmente entra no terreno da poesia, entra em alquimia, entra num processo de transformação interna, na qual a consciência se expande. Você procura e procura e sua consciência vai se alterando. Há uma transformação.

– Há uma relação entre o poeta e o xamã, o mago?
Sim. Certo. Claro. São incantações. Sou muito amigo de novos poetas, poetas do mundo todo. Estão criando uma poesia com forma, com projeções. Há uma tela, e o poema é projetado e as palavras se movem, ganham formas. Há jogos de sons. É uma tentativa de se chegar na incantação mágica. Nada mais que isso, pois para mim eles estão cometendo um engano. Pois a palavra não é apenas som, e sim também conceito. Então um mero jogo formal com os sons de uma palavra está amputado do seu conteúdo. A verdadeira coisa é a união de sons e conceitos.

– O artista tem que experimentar a vida em todas as suas fases? Ser um santo, um bêbado, um feiticeiro?
Depende. Veja, você pode construir sua vida ou pode destruí-la. Eu acredito que um verdadeiro artista não se destrói. Isso é um mito que vem de Baudelaire, o poeta maldito. Eu creio que o poeta revolucionário atual é um homem são. Antes o mundo era são, e os poetas eram malditos. Mas hoje o mundo está maldito. O que quer dizer que ser maldito não é nem um pouco revolucionário. A maior bobagem que podemos oferecer ao mundo é o niilismo. O mundo não vai acabar. A raça humana é boa, vai chegar à perfeição. A raça humana vai conhecer todo o universo. Vai viver tanto quanto o próprio universo, e se converterá na consciência do universo. Essa é a minha meta. Quero conhecer todo o universo, viver tanto quanto o universo, por todos os meios, a reencarnação, o que for, então converter-me na consciência do universo. É o que mais quero.

– É um processo místico, então?
Claro. Claro que é. Os poetas já se queixaram demais. Já trouxeram problemas demasiados. Até já se converteram em políticos. Neruda. Devia chamar-se Pablo Neo-buda. Esse é o seu nome verdadeiro. Já era com um Buda político. Paulo de Rocque, que era um gênio, foi morto no Chile pelos programas políticos. Então, é preciso retirar-se da política e chegar à metamorfose da alma.

– Colin Wilson diz que os artistas são o inconsciente coletivo do planeta. E se perdem a esperança, o planeta perde também.
Você disse que o poeta tem que experimentar a vida, e agora diz que os poetas são a consciência do universo… o poeta não tem que experimentar a vida, o poeta deve deixar que a vida o experimente. O poeta não é o inconsciente coletivo, mas ele transmite o inconsciente coletivo. Quando o poeta não transmite o inconsciente coletivo, se acaba a poesia. É diferente, compreende? Agora, o que é o inconsciente coletivo? O inconsciente coletivo não é uma massa de gente viva. O inconsciente coletivo é tudo o que o homem foi, é tudo que o ser humano é. Não digo “homem”, porque definir o Homem pelo homem seria antifeminista. Então deve-se dizer o “ser humano” e não o “homem”. Tudo o que o ser humano foi, tudo que o ser humano é e tudo o que o ser humano será, mais a energia do sistema solar, cósmico e de todos os universos. Mais o que os magos chamavam de “agente universal”, que é a energia que sustenta o mundo. Isso é o inconsciente. Não é o inconsciente da sociedade, é limitado esse pensamento de Colin Wilson. É preciso deslimitá-lo. E preciso deslimitar o pensamento humano. (Risos) É a primeira vez que me entrevistam pela poesia! Tenho livros de poesia. Tenho Sueño de amor, No basta decir, De aquello que no se puede hablar, Pasos en lo vacío, e estão publicados, na Espanha, na Itália, na França… Mas ninguém compra poesia. Um best-seller de poesia vende 300, 500 livros. O poeta publica 50 exemplares, às vezes. Mas a primeira edição de um comics chega a 70 mil. Então invento poesia no comics, coloco um pequeno poema… Mas o que mais aprecio na poesia, o que me entusiasma, são as entrevistas sobre poesia, porque enfim posso dizer coisas que nunca disse antes.

– O que conhece da poesia brasileira?
Não a conheço. Nos anos 1950, no Chile, conhecia-se uma poetisa brasileira chamada Adelaida Petters Lessa. E estava apaixonada por um poeta homossexual que se chamava Fernando Birre, argentino. E se está vivo, está velhíssimo, porque se apaixonou por Henrique Lignes e por mim. A Henrique fazia declarações… “Não me amas”, e chorava. Mas o adorávamos. E Adelaida Petters Lessa estava apaixonadíssima por ele. E depois encontrei-a em Paris, gorda e reluzente, só comia frutas e chocolate. E Henrique havia lhe enviado uma carta com uma semente, dizendo que era para Diana Caçadora. E me disse: “Eu sou Diana e esta semente me deixou grávida”. Estava grávida pela semente que Henrique lhe enviara por carta. Foi a única poetisa que conheci.

– Vicente Huidobro…
Sim, admirei-o muito. Altazor é um grande poema.

– Foi uma influência?
Eu sou uma pessoa esquisita. Sou um excelente público, veja. Vivo numa biblioteca e cinemateca, tenho 5 mil filmes. Pego dois filmes por dia, às vezes um. Oito livros por dia. Mas ninguém me influencia. Você vê, no cinema ninguém me influenciou, na poesia não, na literatura também não. Não estou influenciado. Sou impermeável às influências. Devo ser um monstro! (risos). Não gosto de batata frita, nem de chocolate. Todo mundo gosta de chocolate, eu não. Sou esquisito. Não bebo álcool! Sou louco. Não fumo. Não me drogo. Eu gostei muito de Huidobro. Huidobro era genial. Era um gênio. Mas para mim o maior poeta em língua espanhola é Antonio Porcha, que escreveu Voces. É o grande poeta metafísico da língua espanhola. A tal ponto que os únicos que souberam descobri-lo foram André Breton e Roger Calois na França, que o traduziram. Era muito pobre, destes que não têm camisa, e escrevia Voces. Frases que vinham a ele. E é metafísica, formidável. Ele influenciou muito Roberto Juarroz. O mestre de Juarroz foi Porcha.

– Você diz que não tem influências…
Sim, mas eu gosto muito de poesia. No Chile há um poeta chamado Rosamel Del Valle. É um grande poeta, dos maiores. Eu tenho a sorte de meus livros venderem. Então todos os meus direitos autorais no Chile eu cedi para que publicassem a obra completa de Rosamel del Valle. Porque é uma maravilha. Um poeta surrealista maravilhoso. Mas poucas pessoas o conhecem. E, para mim, ele é o maior de todos. Contemporâneo de Neruda, e amigo de Humberto Días Casanueva, outro grande poeta, que também caiu no esquecimento por causa de Neruda. Neruda silenciou a todos que não eram políticos.

– Você gosta da poesia de Neruda?
Residencia en la tierra. Os 20 poemas de amor y una canción desesperada me dão urticária. Mas Residencia en la tierra é genial.

– O que pensa de Bataille e Sade?
Os franceses apresentam Sade como uma maravilha. A coisa boa de Sade é que em relação ao sexo, ele usou a imaginação e elaborou todas as possibilidades do sexo cruel e masoquista, principalmente cruel. Isso é admirável. Mas isso é tudo. E quando fala de política é chatíssimo, entediante. Você vai pulando… quem pegou quem e como, se o pai comeu a filha, se a filha deu pro tio, se o tia comeu a mãe, se a moça que iria parir teve as pernas amarradas para não parir, se o menino foi empalado… todas essas coisas que são bastante fantásticas, porque abrem a mente, mas num campo muito obscuro. Então não se pode chamar isso de poesia. E Bataille é bom, um grande estudioso.
“A experiência interior” de Bataille se aproxima da experiência da poesia como você a coloca?
Vou dizer-lhe uma coisa de verdade. A poesia francesa nunca foi além de Lautréamont, que é o único que me parece realmente grande, não em Os cantos de Maldoror, mas sim em outros escritos nos quais se coloca de forma positiva. Lautréamont é extremamente negativo, mas tem poemas absolutamente positivos, e são excelentes. Para mim a França já está em decadência cultural há muitos séculos. Eu os admiro, sabem falar muito bem, mas possuem uma inteligência anal. A França, enquanto poesia, não diz nada para mim.

– E o cinema, também é poesia?
Sim. Glauber Rocha, por exemplo, no Brasil, procurou a poesia. Seu cinema mesclava a literatura, a linguagem, com uma linguagem óptica.

– É isso o que você busca no seu cinema?
Não sei o que busco.

– Por isso buscas…
Por isso busco. Este ano vou levar Psicomagia ao cinema. Será um cinema terapêutico. Vou sair da arte… Se não tem conteúdo, uma imagem não serve para nada. A linguagem pela linguagem não me interessa. Por toda parte temos a imagem pela imagem. Para que eu necessitaria de fazer cinema para mostrar isso? Este céu? Para quê? É preciso colocar algo, para que a linguagem nos dê algo. A linguagem, como a poesia, deve produzir um impacto transformador. Deve transformar-me.

– A poesia o tem transformado?
Sim.

– Qual a relação dos quadrinhos com o cinema, com a poesia?
São artes diferentes, com princípios que se assemelham. O cinema, como o conhecemos, é passivo. Agora, com o lançamento do dvd, já pode parar o filme, voltar atrás. Se você vê passar uma mulher muito bela, pode detê-la, voltar atrás, observar seus quadris, seus seios… e depois continua. Pode repetir uma cena de efeito especial, ou uma que gostou muito. Com o dvd, o espectador se tornou mais ativo. Mas na verdade no cinema o espectador é passivo. Nos quadrinhos não, porque o movimento completo não é dado. Num quadro o personagem levanta o punho, e no outro acerta outro personagem no olho. Então você precisa fazer o percurso do punho na sua mente. Os quadrinhos funcionam por saltos. O leitor é mentalmente ativo. É uma outra arte, com outras leis. E a poesia é uma outra arte. Porque penetra através de imagens traduzidas por palavras. A poesia é uma tentativa, quase condenada ao fracasso, porque tenta dizer com palavra o inefável, aquilo que é silencioso, aquilo que está além da palavra. A palavra buscando expressar o que não é a palavra. É de se ficar louco.

– Mas alguns conseguem…
Sim, claro. Vou ler o poema que escrevi hoje de manhã:

A ave que traspassa minhas recordações
Seu vôo se faz perfume
No centro dos sonhos mora um canto
Os sólidos reflexos do mundo visível
Dão um caráter legal a todos os seus ecos
Naquilo que não sou, encontro o néctar
Através das feras, minha alma se pronuncia
Em qualquer cadeira, posso chegar a um cometa
Os paquidermes do amor e os do ar
Flutuam sobre os telhados como globos festivos
Nos repiques do cérebro brilham luzes
Anunciando a emergência do diamante.

Esse foi o poema que escrevi hoje. Escrevo todo dia de manhã, porque transforma o dia. É igual a colocar um cubo de açúcar numa xícara de chá – o sabor se espalha em todo o resto.